Aritana Yawalapiti, 71

Yawalapiti

Biografia registrada por Felipe Milanez, antropólogo e jornalista, em memória de Aritana Yawalapíti:

 

Do Xingu veio o pedido para que se silenciem as flautas, tirem-se os adornos do corpo, dispam-se das pinturas, pois é hora de recolhimento, choro, tristeza e luto. Nesta quarta-feira 5, faleceu o cacique Aritana Yawalapíti, aos 71 anos, por Covid-19. Ele estava internado havia duas semanas em um hospital particular em Goiânia.

Em uma belíssima reportagem da revista Realidade, de 1966, o repórter descreve o seu fascínio com o Alto Xingu ao começar o texto com o seguinte lead: “o paraíso amanheceu mais uma vez em paz”. Hoje, em meio a uma tragédia humanitária provocada pela pandemia da Covid-19, em meio a um violento processo de genocídio levado a cabo pelo governo federal, esse paraíso amanheceu triste e em luto.

O paraíso que fascinou o mundo em inúmeras reportagens, documentários, programas de tevê, desde que foi demarcado, em 1961, está cada vez mais ameaçado de desaparecer — literalmente de ser varrido do mapa por correntões e agrotóxicos que acompanham a boiada do apocalipse passando, secando seus rios e matando seus anciãos e anciãs.

Aritana era o grande cacique do Alto Xingu. Diplomata, elegante e generoso chefe. Líder político e espiritual. Campeão de huka huka — e, posteriormente, o grande treinador de huka huka. Chefe da aldeia que tinha o nome de um pequeno rio que a banhava, o Tuatuari, de águas cristalinas, areias brancas, farto de peixes, lindíssimo. Um grande conhecedor da história do mundo, de seu povo, dos cantos, de todo o universo de uma língua que está em risco de extinção: “A perda do meu tio Aritana é a perda de 98% da nossa língua. Significa para a gente muitos desmontes”, declarou sua sobrinha Watatakalu para a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).

Aritana descendia de uma sofisticada ancestralidade xinguana: herdou o nome de seu avô e era filho do cacique Parú, que quando jovem se chamava Kanato (falecido em 2001), e de Tepori, do povo Kamayurá (falecida em fevereiro de 2020). A mãe, Tepori, era irmã dos poderosos pajés kamayurá Sapaim (falecido em 2017) e Takumã (falecido em 2014), ambos tios, portanto, de Aritana. Seu irmão Pirakuman foi também um grande líder do Xingu e faleceu em 2015, aos 60 anos. Mataryua, outro cacique e irmão, havia recém falecido, em 24 de junho, por Covid-19, com apenas 40 anos de idade. São nomes que remetem a uma categoria especial de grandes chefes, pajés, guerreiros e guerreiras que defenderam o universo xinguano diante da invasão dos brancos na segunda metade do século passado. Toda essa constelação de grandes pessoas fez a passagem para o mundo espiritual nos últimos anos, num período muito curto, agora acelerado pela Covid-19 e o genocídio.

O ano de 2020 está sendo devastador. E, cada vez mais, fica explícito e atordoante o efeito epistemicida que acompanha as mortes decorrentes do genocídio. Aritana não morreu de Covid-19, ele foi assassinado por Covid-19, como muitos outros anciãos e anciãs indígenas. O Xingu já perdeu para a Covid-19 Mamy, elegante e poderoso chefe Kalapalo da aldeia Kuluene; Jamiko, cacique do povo Nafukuá, que veio a falecer na enfermaria do Posto Leonardo, sem oxigênio; e o ancião, também campeão de huka huka, Juca Kamayurá.

Aritana estava consciente dos riscos terríveis da epidemia, e ele havia cancelado o kuarup que ocorreria em homenagem à sua mãe, Tepori, em agosto — uma decisão extremamente difícil, que levou muito tempo de meditação e reflexão, quando se aconselhou com diversas pessoas e amigos médicos sanitaristas. Essa decisão de Aritana, tomada em junho, influenciou todos os outros caciques xinguanos a também suspender as festas que promoveriam o encontro de diferentes aldeias, aglomerações e risco de disseminação do novo coronavírus. Serviu de alerta da gravidade a todos os seus parentes, que respeitaram e acolheram a decisão em suas próprias comunidades.

Suas decisões costumavam ser seguidas pelos outros chefes; era sempre ouvido como a voz de maior relevância na tomada de decisões políticas que atingissem o Parque do Xingu, em meio ao mosaico de união de povos que é o Alto Xingu. Ali convivem 11 povos indígenas (Aweti, Kalapalo, Kamayurá, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvotu, Trumai, Wauja e Yawalapíti) que falam cada um uma língua própria, de quatro troncos e famílias diferentes (Tupi, Aruák, Karib e Trumai, uma língua isolada) — fora os povos do tronco Macro-Jê, como os Mebengokrê-Kayapo, Kisedjê e Tapayuna, que vivem na porção norte do Parque.

Aritana falava dez línguas, todas dos troncos Tupi, Karib e Aruák, além de falar também português. Junto das línguas, entendia o costume, a cultura, a cosmologia de cada povo; sabia como se colocar, como dialogar de maneira exemplar conforme a educação xinguana. “Era muito querido por outras etnias do Xingu, por isso era também cacique, o Cacique do Xingu!” declarou sua filha/sobrinha (pois filha de seu falecido irmão Pirakuman), Watatakalu Yawalapíti. “Estamos sem chão, a nossa perda é irreparável.”

Para Watatakalu, a mensagem que Aritana deixa é de amar o seu povo: “Nunca esquecer a luta dele. Manter a cultura para termos a nossa identidade. Manter o nosso território protegido para que o nosso povo tenha um futuro. Sejamos dignos com as pessoas que cuidamos. Descanse em paz meu tio querido. Homens com grandes histórias nunca morrem.”

Aritana deixa 10 filhos, sendo o mais velho Tapi, seu sucessor, e duas esposas. Tapi está com sintomas de Covid-19 e em algumas mensagens de áudio reportou sentir-se mal — o que tem provocado ainda mais temor entre amigos e apoiadores dos povos do Xingu.

Deixa uma comunidade devastada pelo luto, sofrendo, em paralelo ao genocídio, a morte do conhecimento, o epistemicídio. De um povo que quase desapareceu após uma grande epidemia de sarampo nos anos 1950, restam apenas três pessoas fluentes na língua Yawalapíti.
(…)

Luto até o Kuarup

Eu tive a oportunidade de estar diversas ocasiões com Aritana, mas duas delas foram extremamente marcantes: duas cerimonias de kuarup que aconteceram na sua aldeia Tuatuari, e foram por ele regidas. O Kuarup de 2014, em que fui com minha companheira, Maíra Kubík Mano, a convite de Pirakuman, e, de forma muito triste, o Kuarup realizado em homenagem a seu irmão Pirakuman,falecido em 2015, e que ocorreu em 2016, a convite da família. E deixo aqui a minha experiência de ter sido conduzido ao mundo espiritual dos Yawalapiti por Aritana. E espero, até que os xinguanos possam realizar o Kuarup, para novamente ouvir o tocar das flautas entrando nas belíssimas casas da aldeia Tuatuari, que certamente irá ecoar para bem longe, por todos os ouvidos dos inúmeros amigos de Aritana pelo mundo.

Eu via Aritana coordenar todo o ritual, com alguns gestos, algumas palavras, e olhares. Sempre falava suave, e fazia pouco esforço para ser compreendido. Todos sabiam que ele estava entre os dois mundos: o mundo dos mortos que iriam receber o espirito que estava ali aguardando a passagem, e o mundo dos vivos que chorava em desespero a partida da pessoa querida. Nesse momento de muito sofrimento e dor, Aritana era um pilar que estruturava o mundo dos vivos em luto — parecia conseguir segurar o céu e prender o chão para não despencar. Ele tinha a calma que só os grandes xamãs possuem, aquela calma que nos acalma quando chegamos perto dessas entidades.

E vi Aritana, em 2016, quando saí da casa da família de Pirakuman para o pátio da aldeia, levar as ultimas palavras para o espírito de seu irmão que estava na fogueira. É uma cena mágica, com o amanhecer esfumaçado das brumas do Xingu, o silêncio da aurora, o frio dos nevoeiros. Aritana estava sozinho — ele conseguia ficar só mesmo entre centenas de pessoas. Eu choro quando me lembro.

Aritana acompanhava a chama do fogo que se apagava junto com a passagem do espírito de seu irmão. Tive a sensação de um vento em um vácuo após a partida do espírito, como se a aldeia fosse tomada por um tornado que levasse a energia para o cosmos. E hoje, lembrar que o corpo sem vida está ainda acompanhado do espírito de Aritana entre nós é de uma tristeza profunda, e que será sentida até o próximo Kuarup, até que a chama do fogo no centro da aldeia apague, e seu espírito possa ir para o universo sagrado junto da divindade criadora do mundo, Mavutsinim, e lá encontrar seu irmão e a ancestralidade. E que seja o ritual tão lindo, e tão belo, como sempre foi, sendo agora conduzido por essa geração que tem a difícil responsabilidade de reconstruir um mundo devastado pelo genocídio para que seus povos tenham futuro, para que seja retomada a existência.

 

Ler a Biografia completa escrita por Felipe Milanez, aqui.

 

A seguir, reproduzimos algumas outras manifestações que vêm sendo registradas nas redes sociais após a morte de Aritana

 

Watatakalu, sobrinha:

 

Que os jovens que respeitam a memória de Aritana continuem respeitando a luta dele. Que mantenham essa luta viva. E que não façam o contrário de tudo aquilo que ele lutou.

 

Anna Terra Yawalapiti, sobrinha:

 

Agora vocês dois cuidarão de todos nós, aonde quer que estejam. 

Estou sem chão sem sentir nada. 

Minha alma e meu corpo estão adormecidos de tanta dor e tristeza.

Descanse em paz tio Aritana.

 

Associação Yamurikumã das Mulheres Xinguanas:


Luto.

Perdemos o grande cacique do Xingu, diplomata, generoso, nobre Aritana Yawalapiti, faleceu aos 71 anos, em decorrência advindas de complicações da Covid-19.

Agradecemos imensamente o tempo que pudemos conviver com ele, pelo conselhos valiosos, ensinamentos, pelo seu apoio a associação Yamurikumã, pela presença nas assembleias, sempre encorajando para não desistimos das nossas lutas, falava sobre a união, que unidas seríamos mais fortes.

A cada encontro com ele nos encorajava para continuarmos persistindo em algo que acreditamos ser o correto, acreditar que podemos sim fazer diferença, porque estávamos fazendo algo novo no Xingu. Ele dizia que nossa associação tinha que ser independente, dizia: vocês mulheres são mais organizadas e não dependam de ninguém para realizar os trabalhos.

Devemos lembrar que na cultura alto xinguana existe um lugar para onde vamos após a morte (aldeia das almas), portanto ele está lá agora, com seus pais, irmãos, primos e os caciques que se foram.

Neste momento de dor pedimos a Mavutsinin que dê conforto ao povo Yawalapiti, à família para que possam enfrentar esta imensurável dor com serenidade.

O tempo que pudemos conviver com ele será sempre lembrado em nossos corações.

 

 

Adelino Mendez, Antropólogo e pesquisador (HCTE-UFRJ), registrou:

 

Adelino, você vê aquela estrela? Ela é a estrela do agricultor, ela nos mostra quando devemos iniciar o plantio. (Aritana Yawalapiti)

Assim ele me ensinou e contou a história do seu povo.

Meu Deus…que dor!

Você está voltando para casa.

Uma vez me disse que não se importava em morrer, desde que estivesse em suas terras.

 

O Tywatywaturi espera seu líder. Eu estarei sempre com você. Te amo irmão.

 

O maior dos Aritanas.

A voz doce, o rosto largo, os gestos contidos. Durante a noite, por mais silenciosa que seja nos confins do cerrado, andava com a leveza dos felinos, na grande casa nada se escutava. Era ele, o amulaw, liderança moldada na dureza dos ensinamentos de seu pai, Kanato, o qual o prendeu por 5 anos no “quarto” de reclusão, onde exilado do cotidiano e dos estímulos da aldeia, foi moldado para seguir a etiqueta xinguana, transformando-se no maior líder da história recente do Alto Xingu.

Dos méritos de lutador da arte marcial xinguana, a huka-huka, guarda o mais importante, o de jamais ter perdido uma luta.

Homem digno, imenso, de uma solidariedade imensurável, de palavras conciliadoras, como é próprio dos grandes líderes do Alto Xingu.

Avô carinhoso, pai presente, rígido e amoroso. Amigo formidável.

Foi, sem dúvida alguma, o maior dos Aritanas.

Awiriruru meu grande amigo.

 

Antonio Carlos Ferreira Banavita, fotógrafo, registrou:


Aritana, grande lider xinguano, vencedor de muitas batalhas em defesa da sua cultura, do seu povo, do seu território. Hoje foi vencido por um inimigo invisível. O Xingu está triste. Parece que por um instante tudo parou. O rio parou de correr, os pássaros emudeceram, as árvores ficam imóveis como em uma fotografia. Tudo parou. O coração de todos parou. Parou a respiração, mas como a sua cultura, os seus ensinamentos, os rituais, seguirão. Sua memória será sempre respeitada e sua luta ficará para as novas gerações. O seu legado de vida segue no Xingu e no coração de todos os povos.

 

Clarissa Beretz, jornalista:

 

Aritana foi o primeiro cacique do Alto Xingu. Foi nomeado aos 14 anos pelos irmãos Villas-Bôas, assim que o Parque Indígena do Xingu foi criado, em 1961. Ele ficou recluso por 5 anos para se preparar para ser cacique, assim me contou. Até uma novela, em 1978, adotou seu nome, inspirada nos povos xinguanos. A morte de Aritana, hoje, 05/08, representa o fim de uma era. Aos 71 anos, ele foi um dos últimos da geração que caçava de borduna e pescava de arco e flecha, em barco sem motor. Só ele e mais duas pessoas na aldeia Yawalapiti falavam a língua pura nativa, Yawalapiti – povo que beirou a extinção, não tivesse procriado com povos xinguanos vizinhos.

Tive a honra de ser apresentada ao alto Xingu por seu maior representante, tendo sido recebida na casa e família desse grande mestre (obrigada pela ponte, André Leite e Lucio Xavante), junto ao fotógrafo Renato Stockler no final de 2018. Fizemos uma matéria para o De Olho Nos Ruralistas sobre o que ele pensava do recém-empossado governo Bolsonaro. Acabo de ver que o portal republicou a matéria, acho que uma das últimas, se não a última, entrevista com esse ser humano encantado e inenarrável. Pense num acolhimento, numa simplicidade, numa generosidade. Aritana era um lord. Tanto que arriscou a própria vida ao manter a tradição e receber o corpo do irmão – também morto pela Covid – para ser enterrado na aldeia. Abraçou os familiares que acompanhavam o caixão, convidou-os a entrar e a cear em sua casa. E se contaminou.

Importante ressaltar que Aritana não foi só vítima dessa tragédia que assola o mundo. É também vítima de um governo assassino e genocida, que declaradamente anunciou guerra aos povos indígenas ainda na campanha eleitoral. E está cumprindo o que prometeu. O Xingu não recebeu ajuda do governo, contando efetivamente com o apoio das ONGs que as fake news tanto execram. Estou dilacerada, revoltada e sem esperança. Que grande perda para o Brasil, para o mundo. Aritana é uma enciclopédia que se vai. Sua sabedoria, sua representatividade, a importância desse homem no território, serão enterrados junto com ele. Gostaria de estar olhando a lua cheia na aldeia bem agora abraçando vocês, queridos Walako Yawalapiti, Tapi Yawalapiti, Xukuta Mehinako, Anna Terra Yawalapiti, Tumin Typro, Huka-huka Mapulu, Pajé Kamayura, Watatakalu Yawalapiti. Tristeza, respeito, silêncio na floresta.

Obrigada, grande mestre Aritana.

(É importante pontuar que, além da tragédia da Covid, Aritana foi mais uma vítima de um governo assassino e genocida, que nega ajuda e promove claramente o extermínio de nossos povos originários.)

 

Renato Soares, fotógrafo indigenista:

 

Minha homenagem ao querido Aritana Yawalapiti

Quando menino escutava a música de abertura de uma novela em preto e branco chamada “Aritana”. Achava fascinante os povos indígenas e sua luta para salvar a aldeia dos invasores. O tempo passou e um dia sentado na sala da casa de Orlando Villas Bôas, vi entrar pela porta o grande cacique Aritana. Olhou para mim e sorriu. Eu, falante que sou, emudeci de emoção e silenciei. Respirei fundo e fiz apenas uma pergunta: “Aritana, me leva para o Xingu?!”

Ele riu, pois achou engraçado do jeito que eu falei. Orlando deu uma gargalhada e disse, “Leva ele e não traga de volta não!”. Rimos e conversamos durante horas. Naquele dia nasceu nossa amizade. Aritana foi um homem especial e amado por toda sua gente. Neste momento os peixes no rio Xingu choram, as onças na mata choram, os passarinhos deixaram de voar neste dia triste. Triste ficamos aqui na terra dos viventes. Minhas lentes e minhas máquinas se trancaram na escuridão, pois sem a luz não há fotografia. Segue em paz sua jornada para o Ivati, encontrar-se com os seus e contar novas histórias.

 

Ulisses Capozzoli, jornalista:

 

A MORTE DE UM BRAVO

Aritana Yawalapiti, filho de Kanato, desde a manhã de hoje (5/8) não respira mais sobre a Terra, onde esteve ao longo dos últimos 71 anos. Líder mais respeitado do Alto Xingu, dividindo prestígio com o primo, Kotok, líder dos Kamaiurá, morreu vítima da epidemia de Covid-19 depois de uma longa e difícil batalha em que saiu derrotado. Aritana era uma espécie de esteio cultural de seu povo e, por extensão, de todo o Alto Xingu, ainda que sua atuação se estendesse por todo o parque, com seus 26.420 km², o dobro da Irlanda do Norte, mais de duas vezes e meia o Líbano e o triplo de Porto Rico.

A morte de Aritana, com sua liderança natural, firme e pacífica, identificada por Claudio Villas-Bôas (um dos célebres irmãos Villas-Bôas, os criadores do parque do Xingu para a proteção e sobrevivência de 16 etnias do Brasil Central) pode ser debitada à estúpida e criminosa recusa do governo em oferecer às populações indígenas, os primeiros donos do que agora é o território brasileiro, um mínimo de garantia sanitária contra a contaminação que varre o planeta como um demônio enlouquecido. As duas últimas semanas de vida Aritana passou confinado em uma unidade de terapia intensiva (UTI) num hospital de Goiânia. Até chegar lá, no entanto, despendeu a energia que teria feito a diferença, caso tivesse tido atendimento pronto, negado sob a forma de veto pelo presidente da república a um plano de atendimento às populações indígenas contra as ameaças da pandemia.

Há três semanas ele estava em sua aldeia, junto ao rio Kurisevo, um dos formadores do Xingu, quando teve uma forte crise respiratória, diagnosticada em seguida como Covid-19. Inicialmente ficou em Canarana, um dos portões de entrada da reserva indígena pelo Sul, mas sua saúde piorou sem que os médicos do parque tenham podido contar com socorro aéreo. Chegou a Goiânia ao final de uma viagem de dez horas a partir de Canarana, no interior de uma ambulância, respirando com ajuda precária de um cilindro de oxigênio. Quando deixou o Xingu, segundo o depoimento de uma sobrinha, Ana Paula Xavante, mais de 50% de seu pulmão já estava comprometido. A morte de Aritana, uma das memórias de seu povo, é mais uma nódoa na imagem internacional do Brasil, ao menos em relação às populações sensíveis à proteção que culturas mais ameaçadas devem merecer, antes que se transformem em imagem apagada do passado. Aritana falava, além da língua de seu povo, do tronco Aruak, outras quatro, como a dos seus parentes próximos, os Kamaiurá, do tronco Tupi-Guarani. Desde a infância foi preparado pelo pai, Kanato Tepori, para o resgate de sua gente, e essa é mais que figura de linguagem. Quando os Villas-Bôas chegaram ao Xingu, comandando a Expedição Roncador-Xingu (para desbravar o Brasil Central como uma das consequências geopolíticas da Segunda Guerra Mundial) os Yawalapiti estavam reduzidos a sete sobreviventes. Orlando Villas-Bôas, e isso ouvi muitas vezes da boca dele mesmo, estimulou casamentos com os kamaiurá e assim os Yawalapiti renasceram. Aritana passou cinco anos recluso em casa, recebendo ensinamentos do pai, tios e avós numa preparação para a tarefa que tinha pela frente. Sua gente havia minguado a partir dos anos 30 e só a miscigenação, que também incluiu os Kuikuro, do tronco Karib, permitiu essa dramática recuperação. Ouvi isso mais de uma vez de Aritana, em especial em um depoimento que me concedeu em 2011 para uma edição especial de “Scientific American Brasil” comemorativa dos 50 anos do parque.

O Brasil é cada vez mais associado à destruição, incêndio e morte no interior da maior floresta tropical da Terra, a Amazônia, majoritariamente concentrada aqui, e a morte de Aritana divulgada por agências internacionais de notícia já aparece nas páginas dos jornais e mídia social de todo o mundo. Há um fascínio e um profundo temor pelo que acontece por aqui, e isso não é mero acaso. O Brasil ainda tem sertanistas, gente especializada no contato com povos isolados, no sentido de estarem separados da sociedade exterior, que parte da mídia chama de “civilização”. Como se as culturas originais, que permitiram a sobrevivência de nações inteiras no interior da floresta, e ainda hoje asseguram isso a pequenos grupos, não tivessem consistência e valor legitimados. Certamente é o caso de acrescentar que os “povos isolados” não são gente sem qualquer contato com a sociedade exterior desde que Cabral desembarcou por aqui. Ao contrário. Eles tiveram e, traumatizados pelo que viram e sofreram, decidiram recuar e procurar abrigo na floresta profunda que agora é vítima do desmatamento, do fogo e de hordas de garimpeiros, também eles resultado de uma sociedade desigual e marginalizadora.

Aritana, por formação cultural e característica pessoal, era um líder conservador, no sentido literal da expressão. Na longa conversa de 2011, comprimida em duas páginas da edição especial de “Scientific American Brasil”, ele falou do temor pelo turismo desenfreado, invasão de pescadores, represas de menor e grande porte, como Belo Monte, além do encantamento de jovens indígenas por motocicletas, pela vida na cidade, que ele acreditava ameaçada por alcoolismo e drogas em geral, e também da dificuldade de seduzi-los para uma função estratégica da cultura indígena, a pajelança. Apenas essa última referência ao espaço ilimitado de reflexão e interpretação do que os “brancos” chamam de “realidade”. Aritana não disse, mas deixou claro, a diferença entre uma sociedade mágica, espiritualizada e ritualística e uma sociedade, digamos, cartesiana, mas esvaziada até mesmo dessa possibilidade, pelo consumismo, alienação e competição que um índio é incapaz de imaginar como estilo de vida.

A morte de Aritana, em uma idade em que poderia fazer muito por seu povo e por todo o Brasil, ainda que muitos sejam incapazes de perceber essa possibilidade, é tanto um lamento quanto um alerta. Mais um. Cada dia mais evidente e dramático em uma sociedade submetida a um brutal processo de aniquilação. Quem tiver interesse em conhecer os cenários possíveis por aqui, talvez possa encontrar resposta em um clássico: o livro “Enterrem meu coração na curva do rio”, de Dorris Alexander Brown, mais conhecido como Dee Brown, escritor e historiador sobre a sanguinária aniquilação de populações indígenas nos Estados Unidos, mostrada em faroestes vivenciados por atores reacionários como John Wayne. Ah! Sim. Essa é a fonte da expressão “brancos” para se referir a não indígenas. Injustificada para um país com perfil como o do Brasil. Aritana, o corajoso e sábio conciliador, no sentido mais nobre dessa expressão, fará falta imensa. E ela já começa a se fazer sentir.

 

Instituto Raoni:

 

O Instituto Raoni manifesta todo pesar e consternação pelo falecimento do cacique Aritana Yawalapiti, 71 anos, ocorrido por complicações de Covid-19, na madrugada dessa quarta-feira (05), no hospital São Francisco, em Goiânia, onde esteve internado desde o último dia 22, na Unidade de Terapia Intensiva, respirando com ajuda de aparelhos.

Filho de Paru Yawalapiti e Tepori Kamaiurá, Aritana foi o primeiro filho do casal. Ainda criança, na década de 1950, conheceu os irmãos Cláudio Villas-Bôas e Orlando Villas-Bôas.

Aritana acompanhou de perto seu pai Paru Yawalapiti e seu tio cacique Raoni na criação oficial do então Parque Indígena do Xingu, em 1961, uma área de quase 2,8 milhões de hectares (divididos entre Alto, Baixo e Médio Xingu) assegurando a 16 etnias o direito de viver em suas terras ancestrais.

Aos 19 anos de idade, Aritana recebeu a nobre missão de se tornar cacique; com isso, passou cerca de 5 anos em reclusão, recebendo ensinamentos e orientações que o preparariam para essa nova etapa de sua vida, de liderança e proteção de seu povo. Passou a atuar na defesa dos direitos dos indígenas, especialmente no que se refere à demarcação de terras, preservação ambiental, saúde e educação.

Falante de várias línguas indígenas, sábio, respeitoso e por conduzir com maestria o diálogo entre os povos indígenas e a sociedade não-indígena, cacique Aritana por inúmeras vezes fez-se representante de diversas outras etnias, especialmente as que habitam a Terra Indígena do Xingu (TIX).

Por seu respeitoso legado, o Instituto Raoni, expressa suas sinceras condolências à família por essa irreparável perda, salientando que seu exemplo de dedicação e esforço ficará como lembrança para todos, hoje e sempre.

Siga em paz, nobre cacique.

FONTES

Foto em Destaque: 

Fotos da Galeria: Milton Guran; Adelino Mendez(1); Renato Soares(1); Renato Soares(2); Adelino Mendez(2); Adelino Mendez(3); Kakatsa Kamaiurá; Adelino Mendez(4); Adelino Mendez(5); Fernando Baggio; Adelino Mendez(6); Kamikia Kisedje; Adelino Mendez(7); Mídia Ninja (Reprodução// via ISA-SocioAmbiental);
Adelino Mendez(8); Adelino Mendez(9); Adelino Mendez(10); Ademir Rodrigues (Reprodução// Arquivo Agosto/2020, Carta Capital); Antonio Carlos Ferreira Banavita (1); Antonio Carlos Ferreira Banavita (2); Adelino Mendez; Antonio Carlos Ferreira Banavita (3); Renato Stockler(1); Renato Stockler(2); Renato Stockler(3); Renato Stockler(4); Renato Stockler(5).


Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/covid-19-leva-aritana-yawalapiti-o-diplomata-do-alto-xingu/ 

Tribune de Géneve
https://www.tdg.ch/le-grand-chef-indigene-aritana-est-mort-du-covid-439778961794?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter

Reuters
https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-brazil-aritana/brazil-indigenous-leader-aritana-dead-from-covid-19-idUSKCN2512T4

Instituto Raoni
https://www.facebook.com/institutoraoni/posts/4498115016880492

Conselho Indigenista Missionário (CIMI-MT)
https://cimi.org.br/2020/08/nota-de-pesar-do-cimi-regional-mato-grosso-pela-morte-de-aritana-yawalapiti/

Hugo Meireles Heringer (O Vermelho)
https://vermelho.org.br/2020/08/05/aritana-o-grande-cacique/

Survival International – Brasil:
https://www.facebook.com/SurvivalInternationalBrasil/photos/a.272869616152749/2853503524755999/

Ana Terra Yawalapiti
https://www.facebook.com/photo?fbid=1166897943692776&set=a.111641509218430

Adelino Mendez
https://www.facebook.com/adelinodelucena.mendes/posts/3136016843181819

https://www.facebook.com/photo?fbid=3138195729630597&set=a.108105445972989

https://www.facebook.com/photo/?fbid=3138493229600847&set=a.108105445972989

https://cutt.ly/HdFsAAr

Clarissa Beretz
https://www.facebook.com/clarissa.beretz/posts/10160118083433065

Felipe Milanez, em Carta Capital:
https://www.cartacapital.com.br/opiniao/morreu-aritana-yawalapiti-silencio-choro-e-o-luto-com-o-xingu/amp/?__twitter_impression=true&fbclid=IwAR3dMrshD6TaBAMOxASni9JvFrvaEG1cZf5swHFtELU0RE7_VHVaoobmpH8

Instituto SocioAmbiental (ISA)
https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/aritana-yawalapiti-grande-lutador-e-articulador-de-mundos?utm_source=isa&utm_medium=&utm_campaign=&fbclid=IwAR3lfTRz0cAAqCq07z8AMef72Pem9k9sCYRZqg9c9FzEylzC-Yb_pMHiT8k

Fernando Baggio
https://www.facebook.com/photo?fbid=10205551917270558&set=a.4082789681359

Renato Soares
https://www.facebook.com/photo/?fbid=10224084745446455&set=a.1501878106958

Ulisses Capozzoli & Renato Soares (fotografia)
https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=2620822008135276&id=100006225071086

Kamikia Kisedje
https://cutt.ly/6dFsYPe

Kakatsa Kamaiurá
https://www.facebook.com/photo/?fbid=10220835999824571&set=p.10220835999824571

Mônica Nunes
https://www.facebook.com/photo/?fbid=10159498154329368&set=a.405358229367

Milton Guran
https://www.facebook.com/photo/?fbid=10216680183509801&set=a.3732585646019