Dace Biorebu, 77

Munduruku

Homenagem escrita po Honésio Dace Munduruku, filho de Dace Biorebu.


Dace Biorebu, como era conhecido por Arcelino Dace Munduruku em língua
portuguesa, foi um dos últimos sábios que carregava no seu acervo mnemônico, séries de conhecimentos de seus ancestrais. Os munduruku de seus contemporâneos eram indivíduos que dominavam conhecimentos de variados aspectos e entendiam por essência tudo sobre a respeito da cosmologia, são pessoas muito ligadas às crendices, nas suas concepções acreditam que o ser humano é reencarnado na figura de animais logo após a morte, esse tipo de crença é o ponto mais forte e dominante à geração do Arcelino.

Os Munduruku dessa geração são considerados últimos sábios, porque eles dominavam como dito, diversos conhecimentos que eram restritos aos mais jovens, eles adquiriram saber devido a forma como foram criados, seus pais os preparavam desde cedo para ter capacidade de aprender conforme aos moldes tradicionais.

A forma de ensinamento dos jovens munduruku daquela época era muito forte aos costumes e tradição dos ancestrais, e todos jovens eram ensinados na “Uksa”, um tipo de casa de guerreiros, onde os ensinamentos eram transmitidos oralmente pelos mais velhos aos mais novos sobre cosmologia, arte, história, e sobre diversos tipos de conhecimentos, “uksa” era o lugar exclusivo para homens, as mulheres eram proibidas a entrar e nem podiam ter acesso sob pena de castigo pelos espíritos da natureza.

Essa base de aprendizagem, que tornava os munduruku primitivos sábios em qualquer tipo de assunto relacionado à cultura, arte, forma de organização, agricultura, caça, pesca, conhecimento sobre remédios tradicionais, xamanismo, crença e assuntos de defesa etc. Assim, os munduruku que antecederam a geração atual eram sábios, mas cada um tinha sua especificidade, como exemplo disso, Arcelino tinha conhecimento sobre diversos temas, como pintura, cântico, instrumentos musicas, histórias, mas sua especialidade era artesanato e como puxador.

De acordo com suposição dos mais velhos, conforme o tempo foi passando, o povo munduruku foi mantendo contato com os “brancos”, e isso influenciou os mais jovens a não terem ligação amigável com a natureza primitiva, e assim estão praticamente perdendo essência e habilidades em resgates daqueles conhecimentos práticos que os mais antigos possuíam, com se não bastasse, ultimamente o povo munduruku está perdendo os valiosos sábios por conta da epidemia que veio assolar de forma desastrosa nas aldeias do Médio Tapajós e no Alto Tapajós, bem como em diversas regiões do Brasil.

Arcelino, nasceu no dia 20 de julho de 1942, na região do Rio Cururu, filho de Timóteo Dace Munduruku e Celina Saw Munduruku, eram uns dos últimos Munduruku que ainda habitavam região de savana, o que em certo período foram atraídos pelos franciscanos a morar às margens dos rios. Como exemplo disso, a aldeia Missão Cururu, inclusive o próprio Arcelino em sua adolescência participara em convento dos Freis que se localizava na aldeia Missão Cururu, o objetivo da assistência do convento era que os jovens munduruku pudessem aprender “boas novas” do evangelho e ainda mesmo que discretamente, eles pudessem adquirir novas culturas até vistas pelos padres como decentes.

Ele pertencente ao clã “esbranquiçado”, linhagem de “Dace” que significa em português “harpia” ou “gavião-real”, espécie de maior águia da Amazônia. Seus pais, segundo seu relato quando ainda em vida, eram Munduruku que não usavam calçados, caçavam com arcos e não falavam português, usavam vestimentas tradicionais.

A saga começou para Arcelino na época em que pele de animais estava no auge entre mercadores e regatões na região da TI Mundurukânia, muitos comerciantes faziam trocas e compras desses produtos com os Munduruku. E de igual forma, extração de borracha e de caucho também estavam movimentando muito os comerciantes aventureiros.

Sua saída da região do Cururu foi motivada por esse advento comercial da época, assim ele teve seus primeiros contatos com outras aldeias localizadas durante a extensão da região do Kaburua e demais regiões da savana. Durante sua juventude ele conheceu Kaba Remug’u͂ m (In memória), que tinha por nome em português Luzia Kaba Munduruku, que era do clã “avermelhado”, que tinha como sub-clã “kaba”, denominação dado à espécie de papagaio. Com ela, Arcelino construiu família e tiveram os primeiros filhos. Nessa época, eles moraram na aldeia Kaburua. Já em meado à década de 70, o mesmo foi morar na aldeia Katon, nessa aldeia tiveram mais filhos totalizando 8 filhos, dentre os quais 5 homens e 3 mulheres.

Ainda na década de 70, Arcelino teve participação indireta na tradução da Bíblia do Novo Testamento em munduruku, denominada de “Deus ekawentup Kawen iisuat”, esse trabalho era da Missão Igreja Batista com apoio de Summer Institute of Linguistics – SIL, ainda atualmente localizada na aldeia Sai-Cinza. Sua colaboração neste trabalho evangelístico foi ajudar a traduzir termos bíblicos a partir do ponto de vista linguístico da língua munduruku.

Arcelino, era “letrado” em língua munduruku, conhecia léxicos, termos, palavreados, sinônimos, metáforas e diversos recursos linguísticos de ângulos diferentes no sentido de pronúncia e de significados. Sua colaboração, era instigar determinados termos bíblicos que tinham sentidos e significados oblíquos, pois para compreensão do munduruku, as palavras têm que ser ditas e pronunciadas de forma precisa para não causar ambiguidade.

No conhecimento de semântica munduruku, ainda que analfabeto, Arcelino era culto, em sua conversa ou quando decidia explicar algo, ele utilizava diversas palavras e frases para explicar o mesmo sentido, sempre tinha atenção em vários ângulos discursivos. Foi devido a esse talento que a Margareth (americana) o chamou para ajudar na tradução indireta da Bíblia do Novo Testamento.

Durante o trabalho, ele estivera em algumas capitais, como Belém e Cuiabá, inclusive, algumas pessoas que gostavam de brincar com ele o apelidaram por isso de “Cuiabá”, isso porque em todos seus relatos o mesmo costumava falar sobre sua viagem em Cuiabá. Em um dos relatos marcantes do mesmo, que segundo ele, na feira de Cuiabá o mesmo conheceu grupo de pessoas que tinham papo igual algumas aves, ele comparava essas pessoas com arara que também tem papo, ao invés de ter estômago.

Na década de 90, Arcelino foi um dos grandes garimpeiros que movimentou a região de Katon, muitos de seus conterrâneos e de outras regiões trabalharam com ele numa espécie de garimpo que era feito manualmente. Houve muita correria, vindas de pessoas de outros lugares em busca de ouro. O mesmo, era conhecido como explorador exímio de garimpo, havia época, principalmente após o período de broca e plantação de roça, ele saía em busca de encontrar garimpo, geralmente, quando encontrava, distribuía entre pessoas que o procuravam, isso sem exigir porcentagem.

Mas, o mesmo não levou adiante esse dom, segundo ele, isso não trazia beneficio para ele e para sua família, apesar de que havia muita gente trabalhando à sua custa, e decidiu parar, visando cuidar de sua família conforme tradição munduruku.

Desde a sua juventude, ele foi homem trabalhador, sua principal atividade era roça para suprir a família, plantava muito maniva, macaxeira, cana-de-açúcar, cará, cará-açu, batata, variadas espécies de bananas. Por onde passava, costumava plantar diversas espécies de plantas, como laranjeiras, abacateiro, cacau, açaí, manga, lima, gostava de plantar fruteiros de espécies raras e bem como remédios tradicionais.

Também foi, um dos grandes caçadores, mas diferente de seus pais, o mesmo usava espingardas, era exímio atirador com rifle 22 e cartucheira 28. Gostava de caçar pacas à noite de canoa, andava com sua inseparável esposa, ela era seu piloto na polpa da canoa. De dia caçava macacos, araras e demais caças maiores, apesar de que viveu na região escassa de caças. Ele costumava curar cachorro para ser bons caçadores de cotias e pacas, e adorava caçar com cão de dia. Conhecia como ninguém a floresta, o mato, veredas, riachos e espécies de plantas silvestres, inclusive, costumava coletar frutos silvestres.

Arcelino, sabia como pegar peixe, ao menos para alimentar a família, num lugar onde os peixes eram muito escassos. Pescava de caniço, com linha e até mesmo com tradicional uso de timbó, seu principal pescado eram aqueles peixes lisos, como mandí, mandubé, surubin, porque para ele esses peixes não tinham espinhas e assim eram alimentos apropriados para crianças. Era homem incansável, de dia trabalhava na roça, ao entardecer saía para pescar com a companhia de sua esposa. Sabia prover a necessidade, quando acabava açúcar, fazia café com garapa de cana-de-açúcar, não demonstrava moleza, mas era espécie de homem e pai tradicional à moda de seus ancestrais, rígido e exigente.

Certa vez, quando ainda tinha uns trinta anos de idade, ele quase perde um filho que ficou doente por dismitidura, inflamação de junta devido à queda. Na época, o mesmo estava num lugar que não tinha pessoas, por isso, não tinha como procurar puxadores conhecidos da época. Então, de acordo com seu relato, ele ficou desesperado ao vero estado em que seu filho se encontrava.

Assim, ao dormir, teve uma visão por meio de sonho, no qual o calango veio até ele para pedir que ele puxasse o filhote que estava morrendo de dismitidura, segundo Arcelino, ele aceitou e puxou, e logo o filhote de calango ficou sarado, então, o calango falou para o mesmo que ele era um bom puxador e lhe agradeceu. Quando acordou, segundo ele, teve ideia de puxar o filho doente lembrando o que o calango havia lhe dito num sonho, e aconteceu que deu certo, o filho moribundo ficou sarado.

Desde então, ele passou a acreditar em sonhos, Arcelino como seus ancestrais, era homem que levava a sério todos os seus sonhos, para ele, todos os sonhos tem significados, eles premeditam algo ruim e algo bom. Por isso, qualquer atividade que requer cuidado como caça, pesca, precisa ser planejada, qualquer andança no mato, precisa de cuidados redobrados, porque lá há cobras, animais peçonhentos e tocos de pequenas plantas que podem machucar.

Caso sonhar algo negativo, que premedita algo ruim, Arcelino costumava fazer um tipo de ritual ou tipo de “cura”, espécie de oração conhecidos tradicionalmente. Para desviar a cobrar, ele costumava pegar lenha acesa e passar entre as pernas, que segundo ele isso desvia a cobra do seu caminho, às vezes, ele fazia passar por entre a corda de arco que também tem efeito semelhante.

Ele era o grande conhecedor de plantas medicinais, na época não havia praticamente o acesso aos medicamentos da medicina ocidental. Então, muitas doenças comuns eram tratadas com medicamentos tradicionais, tais como gripe, diarreia, coceiras, febre, inflamação e entre outras. E da mesma forma, ele conhecia muito bem, os remédios que servia para tratar diversos tipos de problemas patológicos em crianças, como hemorroida e outras.

Sabia, fazer tratamento para crianças que tinham dificuldades em aprender a falar e andar. É comum entre munduruku a crença de que há certos alimentos que não podem ser consumidos pelos pais enquanto a criança é recém-nascida, ela pode ocorrer anomalia fisicamente ou tornar-se doente para esse tipo de problema, ele tinha conhecimento de plantas medicinais de origem vegetal e animal para tratar.

Para ele, ao redor da gente, há inúmeras criaturas malignas que podem machucar as pessoas ou até mesmo matar, segundo ele, o boto é a pior espécie de animais que tem poder sobrenatural, quando em transe ele se transforma em criatura maligna, tem semelhança entre “joropari”, criatura maligna invisível a olho nu, esse pode matar qualquer pessoa quando se cruzar num caminho, que geralmente anda nas altas horas da noite, geralmente seu ataque é fatal.

Há também, segundo Arcelino, criatura sobrenatural “axik”, espécie de espírito de criança, que costuma matar somente crianças, e por isso, há algum tipo de “remédio” de prevenção. Arcelino era exímio artesão, fazia pulseiras e colares com madeiras brutas, coco de tucumã e osso de boi. Dentre as artes, ele fazia por vezes, uma espécie de miniatura de boneco com certo tipo de madeira específica, esse era de utilidade para criança, o qual, segundo ele, podia desviar atenção de “axik” que é atraída pela criança. Por isso segundo recomendava “não ande com criança de noite no meio do caminho e nem fique passeando nas casas alheias”.

Ele não era pajé, e sim era puxador, que aos poucos foi se aprimorando até ser reconhecido como melhor puxador no Alto Tapajós. De acordo com ele, aos poucos foi perdendo habilidade devido à inveja de outros, que inclusive jogaram “kawxi” no seu braço para prejudicá-lo, deixando-o sem força. Assim, com tempo ficou sem força para puxar adultos. Mas mesmo assim, logo após desse episódio ele se tornou um grande puxador de crianças, o mesmo ajudou muitas crianças e adultos doentes a se curarem de traumas e de dismitiduras. Seu desejo era que um dos filhos aprendesse também a puxar, dentre os oito filhos, apenas um demonstrou afinidade, no caso uma filha chamada Eliana.

Na questão de conhecimento de história e lutas épicas do povo munduruku, guerras e conflitos entre outros indígenas, ele tinha um grande acervo, que é inacreditável, podia passar uma noite contando histórias, não acabava seu repertório. Conhecia muitas palavras antigas que geração de hoje não reconhece. Sabia e reconhecia vários alimentos e iguarias dos tempos remotos. Sabia contar seu sonho por detalhes no dia seguinte, isso porque, segundo ele, não bebia água do fundo do igarapé, ele respeitava tudo que seus pais o aconselhava.

Todos os filhos cresceram “curados” com tipo de remédio tradicional, porque seu desejo maior era de que eles fossem alguém na vida, nos estudos, ele queria muito que seus filhos aprendessem a falar português e saber de algo importante, segundo sua visão. Ele queria que alguém aprendesse a tocar instrumento, e assim comprou uma vez um violão, pois desejava que seu filho se tornasse um músico.

Arcelino saiu da aldeia Katon no final do primeiro semestre de 1996. Isso, porque sua esposa havia sido diagnosticada com tuberculose e precisava urgente de tratamento e, naquela ocasião, o município de Jacareacanga não tinha suporte para esse tipo de tratamento. Assim ele ficou algum tempo em Sai-Cinza, onde no primeiro momento recorreu aos pajés, conforme agravação do caso, foi para Jacareacanga e de lá decidiu de vez ir para cidade de Itaituba-PA. Vendeu sua espingarda calibre 22 que tinha para custear sua passagem, assim, em 1999, ele chegou em Itaituba, onde passou alguns dias morando no bairro da Liberdade na casa da parente de sua esposa, a saudosa Iporo Buyat’um, e logo após indo para Pimental onde na época morava sua filha Diana.

Como na comunidade de Pimental não tinha lugar suficiente para seu plantio, ele resolveu morar por um tempo numa comunidade chamada de Parana Mirin, no sítio da saudosa Iporo Buyat’um passou quase um ano, e como não deu certo também, em 2001, ele procurou lugar na aldeia Praia do Mangue, onde morava seu cunhado João Kaba. Passado alguns dias, Amancio Ikon (in memoria) concedeu lugar para ele morar na aldeia Praia do Mangue. Então, o mesmo começou a fazer roça, que logo mais tarde tornaria um espaço onde seus familiares logo depois da chegada também vieram para morar.

No inicio, Arcelino plantou inúmeros pés de plantas, mas a maioria não deu certo, só ficaram as plantas comuns. Construiu lar, os filhos cresceram, casaram-se, e aumentaram os netos, e hoje o pequeno espaço que fica na aldeia Praia do Mangue, tem o suor e o trabalho do homem humilde e trabalhador.

Logo que as pessoas começaram a ter conhecimento a respeito dele no Médio Tapajós, ele ficou conhecido e reconhecido como um dos melhores puxadores e artesão. Ele ajudou muita gente, quando ainda estava sadio no sentido de saúde, muitas pessoas o procuravam, tanto indígenas, quanto brancos, pessoas dismitidas, pernas, costas, braços machucados ou das vezes quebrados. E da mesma forma, ele era muito procurado pelos turistas devido a seu artesanato, Arcelino fazia pulseiras e colares muito lindos, e isso fez com que ele ficasse conhecido no Médio Tapajós.

Ele foi homem bastante trabalhador, só parou de trabalhar na roça logo que sua esposa faleceu em 2017. No início de maio, ele iniciou complicações do problema de saúde, que era cálculo biliar, conhecido como pedra na vesícula, durante crises foi levado para emergência do hospital de Itaituba-PA três vezes, provavelmente durante essas idas, o mesmo foi infectado pelo covid-19, inclusive, antes do seu falecimento testou positivo para Covid-19.

Arcelino Dace Munduruku, faleceu no dia 03 de junho de 2020 pela manhã, levando o legado adquirido durante sua trajetória em vida que ninguém e nem seus filhos herdaram. Mas, o seu legado deixado é o exemplo de homem humilde, trabalhador e honesto, e isso pelo menos são qualidades mais fáceis que serão lembradas eternamente.

FONTES

Foto em Destaque: Honésio Dace Munduruku 

Fotos da Galeria: Honésio Dace Munduruku 

 

Mediação: Luciana França (Antropologia, UFOPA – Santarém/ PA)

Amâncio Ikõ Munduruku, 60

Munduruku

Homenagem (biografia) escrita e enviada por Arlisson Ikõ Biatpu Munduruku, filho de Amâncio Ikõ Munduruku.

 

Amâncio Ikõ Munduruku – Nome próprio em Munduruku, IkõMuywatpu, nome que em seu tempo era dado pelo pai IkõBijatpu após o nascimento, esses nomes eram nomes de grandes guerreiros que se destacavam nas guerras de nossos ancestrais. Amâncio nasceu em 03 de julho de 1960, em uma aldeia antiga de campos savanas, chamada de Ũrũbuda, abaixo da Aldeia Kaburuá, cabeceira da nascente Waodadi no Rio Kabitutu, Alto Tapajós.

A história de Amâncio começa saindo de Ũrũbuda, com o pai, mãe e irmão Tiago Ikõ Munduruku – IkõBajatpu, primeiro para serem batizados pelos padres na antiga Missão Velha, neste local foram batizados e receberam nomes de brancos, por meio de batistérios, ficaram ali por pouco tempo, seu pai queria que eles estudassem e pudessem aprender ler e escrever, seu pai sempre via que os brancos dominavam sobre eles, quando trabalhavam no ciclo da borracha e com ouro nos garimpos. Por não ter conhecimento, ele sempre era trapaceado e dizia a seus filhos que isso acontecia porque ele não sabia ler e escrever. Quando morou em Ũrũbuda, conheceu algumas aldeias do campo, onde existia a casa dos guerreiros, chamada de uk’ça, era uma de suas memórias mais importantes, porque era um lugar onde se transmitia conhecimentos importantes sobre a história e estratégias de resistência. As influências da borracha e ouro foram muito ruins para o povo Munduruku, meu pai dizia que isso causava muita inveja, muita discórdia e intrigas, porque também os brancos ensinavam muito o individualismo nos seus negócios e isso fazia com que muitos parentes abandonassem suas aldeias para morar em outros lugares. Mas, ele dizia que a maior vontade de seu pai, era levá-los para estudar. Nessas viagens, seus pais acabaram perdendo seus batistérios e seu pai precisava trabalhar na coleta de seringas, quando o dono do seringal perguntou o nome de meu avô, ele não sabia mais, ele só sabia seu nome de origem Munduruku. Ao pronunciá-lo, o seringueiro disse que aquele nome não era um nome bom, então decidiu dar-lhe um nome, onde passou a se chamar de Clementino de Morais, e minha avó de Maria Juliana Sirma. Essa foi uma das coisas muito tristes na história de sua família, porém foi preciso para que pudessem trabalhar nos seringais. Meu avô IkõBijatpu, decidiu descer o rio em busca de educação para seus filhos, porque ouvia dizer que Jacareacanga só oferecia até a quarta série, quando os adolescentes terminavam seus estudos, tinham que fazer novamente o mesmo ciclo, e ele não aceitava. Com o dinheiro recebido com a seringa e ouro, comprou um batelão – embarcação de médio porte, maior que uma canoa normal – e desceram o rio Tapajós, chegaram até a aldeia onde morava o tio irmão de sua mãe, Vicente Saw Munduruku, cacique da aldeia Sai Cinza, e ali permaneceram por duas semanas e voltaram a viajar.

Nessas viagens eles pararam em vários lugares e permaneceram por pouco tempo, pararam num lugar chamado Mangabal, chegaram fazer um tapiri – casa pequena cercada e coberta de palhas -, fizeram roças e permaneceram por pouco tempo nesta localidade, até chegarem em Pimental, comunidade onde sabiam que moravam parentes da mesma etnia. Por não conhecerem os canais de passagens pelas cachoeiras, seu pai decidiu ir caminhando para São Luís do Tapajós, porque ali morava um parente, Manoel Saw Munduruku, cacique falecido da aldeia Sawre Jaybu, este conhecia os canais de passagens com canoas, e então ele os ajudou a chegarem em São Luís do Tapajós, uma vila às margens do rio. Neste lugar moraram por dois meses e continuaram sua viagem, até chegarem em Itaituba em 1968, onde procuram por um parente chamado Inácio Paygo Munduruku – PaygoBamũybu, este morava próximo do lugar onde hoje é a Aldeia Praia do Índio. Com esposa e filhos, ficaram um período de curto tempo e continuaram procurando um lugar para morar, foram para a outra margem do rio, chegaram conhecer até a boca do Rio Tapacurá, voltaram e moraram próximo a uma comunidade chamada São José, fizeram um tapiri e plantaram roças, chegaram cogitar morar naquele lugar. Neste período seus pais fizeram amigos brancos e entregavam seus filhos para estudarem em Itaituba, chegaram morar com pariwat em busca de educação para seus filhos. Neste período sua mãe ficou enferma e diagnosticada com tuberculose, por isso seu pai, decidiu morar mais próximo da cidade, para tratar a saúde de sua esposa.

Ao sair de São José, eles moraram às margens do Rio Piracanã, um lugar que achavam bom para morar, porém sua mãe, numa noite tentando matar pernilongos – mosquitos –, causou um incêndio acidental e, na tentativa de salvar pelo menos as redes, queimou-se, ferindo os braços gravemente. Como aquele lugar ainda ficava distante da cidade para o tratamento de saúde, procuraram um lugar mais próximo da cidade, neste tempo a cidade possuía duas ruas somente.

Chegaram até o lugar que hoje é a Aldeia Praia do Mangue, aos poucos alguns parentes foram chegando para tratar de doenças na cidade. O pai de Amâncio agregava todos e dava-lhes um tempo para ficar, porque temia o pouco espaço que tinham para morar. Com a chegada da Funai – Fundação Nacional do Índio – o pai de Amâncio fazia cobrança para que seu povo tivesse segurança sobre a terra que morava, pois havia constantes ameaças de invasão e muitos supostos donos da terra. Porém, em articulação com a Prefeitura, obteve a segurança de ali morar, já que a terra não pertencia a ninguém, se não a eles.

A primeira esposa de Amâncio foi contra o gosto de seus pais, pois era do mesmo clã, branco, nem seus pais, nem os da sua esposa concordavam, nisto resultou a separação. Por não haver mulheres do clã vermelho mais perto, ele casou-se com uma branca – Pariwat, levou-a para aldeia e com ela teve três filhos, Arlisson, André e Adria. A morte de seu pai, foi algo que desestruturou a família, ficando somente sua mãe que mais tarde veio a falecer e seus irmãos Tiago, Marcos, Francisco e Idelita. Ao falecer o patriarca alguém deveria conduzir a aldeia, então ficou a cargo do primeiro filho Tiago Ikõ. Amâncio e seu irmão Tiago chegaram a servir o exército, seu irmão Tiago engajou no exército, enquanto Amâncio decidiu cuidar do espaço que seu pai deixou. Como Tiago prestava serviços ao exército, quase não podia administrar os serviços da aldeia, Amâncio continuou fazê-los.

Todas as manhãs, visitava as poucas famílias que residiam naquele espaço, procurava saber como estavam, o que precisavam, quais eram seus incômodos, e aconselhava-os não desistirem e tentava com a ajuda FUNAI encontrar projetos que pudessem fortalecer a aldeia em busca de melhorias. Em 1995 numa reunião com aquelas famílias, os pais falavam de suas preocupações com a educação de seus filhos, naquele tempo as escolas eram conveniadas, pagava-se uma taxa e eles com muito esforço mantinham seus filhos na escola, até começarem cobrar por uniformes, os filhos dos moradores voltavam da escola porque não podiam entrar. Amâncio procurou a FUNAI, e o CIMI – Conselho Indigenista Missionário, para alguma solução para aqueles moradores. A FUNAI e o CIMI, através de uma indigenista chamada Terezinha Vieira, começaram articular uma educação diferenciada para aldeia, foram várias reuniões, vários momentos de ideias e Amâncio sabia que também era preciso resgatar a língua Munduruku na aldeia, assim como a cultura e a escola seria o lugar onde tudo começaria.

Em 1996, a Escola Indígena IkõBijatpu era inaugurada, porém sem apoio da Prefeitura de Itaituba, os primeiros professores eram voluntários da própria aldeia, e a vida escolar dos alunos era obtida através do apoio de uma Freira que possuía uma escola num bairro carente do município, depois de muita insistência, a prefeitura reconheceu a importância daquela escola e começaram assim os projetos de educação escolar indígena.

A partir da escola, começavam-se abrir os horizontes para novas conquistas, e ao participar de uma audiência em Santarém, sobre os grandes projetos para bacia do tapajós, um vereador de Itaituba, disse em sua fala que não havia índios em Itaituba, isso porque, estes deveriam ser consultados, isso despertou em Amâncio que para os brancos, ser índio, era está organizado no formato deles, então iniciava-se um novo projeto jurídico, que seria a fundação de uma Associação que pudesse representar os Munduruku que moravam nesta região, começaram procurar os parentes mais próximos para discutir esse projeto, eram eles, parentes de pimental, Aldeia Sawre (km 43), São Luís do Tapajós e Aldeia Praia do Índio e com ajuda da Funai e CIMI, conseguiram fundar em 1998 a Associação Indígena Pariri, que se traduz num enxame de abelhas. Amâncio foi o primeiro presidente da Associação, ao mesmo tempo, também organizava-se como primeiro presidente distrital de Saúde Indígena, junto ao DSEI RIO TAPAJÓS. Atuou por 8 anos à frente da Associação de 1998 a 2006, atuou como presidente do CONDISI – Conselho Distrital de Saúde Indígena de 2000 a 2005.

Amâncio participou de inúmeros eventos sobre Educação Escolar Indígena, foi por muito tempo delegado nato representando a Educação Escolar Indígena a nível municipal, estadual e Nacional, também participou de Conferências Nacionais de Saúde Indígena e de afirmação da cultura para os povos indígenas. Amâncio não gostava que lhe chamassem de índio, quando perguntavam a ele o porquê, ele dizia que era Munduruku. Sempre participava de todas as Assembleias dos Munduruku do Médio Tapajós e incentivou o Cacique Juarez Saw Munduruku a sair da comunidade de Pimental para voltar ao território ancestral de nosso povo, onde marcam a história dos porcos de KaroSakaibu, Território hoje conhecido como Sawre Muuybu e Daje Kapa Eiipi.

Amâncio lutava na justiça pela mudança de seu nome e de seus irmãos, filhos e sobrinhos, sempre em reuniões com Juízes, Promotores e representantes de governo, colocava em pauta esse assunto, porque não aceitava o nome que carregava e que por muito insistir, conseguiu mover uma ação com apoio da Funai e pôde mudar seu nome para identidade cultural e também de outros parentes que sofriam com a mesma situação.

Esse grande líder ausentou-se das lutas por um período, por ter sofrido um grave acidente na cidade em 2010, onde teve graves fraturas na clavícula, rosto e pernas, anteriormente já sofria de problemas na coluna, e tudo isso fez com que se ausentasse dos movimentos de luta, mas sempre estava nos bastidores, como ele dizia, aconselhando e incentivando as lutas. Também esteve ausente quando sua esposa adoeceu por complicações de diabetes, e este acompanhava-a durante o tratamento até o dia de sua morte. Ele também, foi quem incentivou muitos jovens a conhecerem as lutas de perto, dando-lhes oportunidades para conhecerem outros povos e entidades que atuavam na formação de lideranças jovens para continuação das lutas dos povos indígenas. E preparou muitas lideranças jovens para atuarem e darem continuidade nos projetos da Associação e das comunidades indígenas.

 Atuou como professor itinerante nas turmas do Ibaorebu, projeto de formação integrada em ensino médio e técnico, onde destacava-se as seguintes áreas: Magistério Indígena, Técnico em Enfermagem e Técnico em Agroecologia, que acontecia na Aldeia Sai Cinza, e era Coordenado pela FUNAI, onde também formou-se, Técnico em Agroecologia. Amâncio enxergava o Ibaorebu como a resposta para formação intelecto cultural de seu povo e sonhava poder ver novas formações dentro do território Munduruku, inclusive a nível superior com modelos interculturais.

Em 2016, este líder começava voltar ao movimento indígena, sempre sorridente, alegre, calmo, manso, era assim que todos o conheciam, casou-se novamente em 2018, com a Professora Claudeth Saw Munduruku, onde ambos de luta, começavam sonhar novamente projetos de vida para suas aldeias, ele aos poucos estava retornando as atividades na aldeia, promovendo reuniões, aconselhando e sempre muito preocupado com o caminhar da luta pela demarcação e homologação de terras, projetos de educação diferenciada e assistência à saúde indígena no território, incentivando pesquisas sobre os resultados de mercúrio no sangue dos Munduruku, entre outros fatores que perturbam o território indígena. Na Aldeia Praia do Mangue, lidava constantemente com ameaças de invasão a terra, com invasores que entram escondido na terra para uso de drogas, captura de pássaros em gaiolas e intrusos que querem usar a terra para fazer o mal.

Em 2020, no início do ano, Amâncio foi acometido por uma pneumonia, e realizou tratamento sendo acompanhado pela equipe de saúde na própria aldeia, encerrou o tratamento e estava preocupado com ameaça do novo COVID-19 nas aldeias, chamou seus irmãos para uma reunião, onde delegava funções para que houvesse maior empenho a respeito da área conquistada por seu pai, falou do fortalecimento da unidade e compromisso de todos com aldeia e a preservação de espaços separados para manutenção da floresta existente, Amâncio não entendia o mato como lixo, entendia como vida, como forma de preservação do solo. Sempre estava preocupado com a organização da aldeia e, na medida do possível, estava apoiando os projetos da associação e outras comunidades.

Certa vez, sem entender, perguntei a ele por que não fazíamos uma cerca para proteger nossas criações, ele me disse: “filho, aldeia não tem muros! Por isso os pariwat virem se confrontando, porque eles não certeza do que possuem. Ele continuou dizendo, aqui na aldeia, cada um sabe o que cria, o que planta, todos devem respeitar o espaço dos outros, não precisamos de muros para saber o que temos.

Era sábio ao se manifestar, sempre sabia o que falar, se preparava muito para enfrentar diversas situações, porém em 16 de maio de 2020, começou sentir febre e dores no corpo, sem saber o que acontecia, mandou chamar seu tio João Korap, outro puxador da aldeia, para pôr seus ossos no lugar, mas a febre não o deixava, preocupada sua esposa alertou a equipe de saúde sobre a situação, e eles obedecendo o protocolo da SESAI sobre como agir diante da suspeita de COVID-19, aguardavam 9 dias, até fazer o teste para melhor avaliação. A família estava muito preocupada e sempre estava cobrando da equipe melhor acompanhamento.

No dia 24 de maio, a esposa de Amâncio, ligou para seu filho mais velho, informando que este deveria levar seu pai a emergência, pois os medicamentos que ele tomava, não apresentavam melhoras, a equipe foi acionada, e foi levado em ambulância para UPA de Itaituba, e ficou internado até o dia 29 de maio. Pela manhã foi visitado por seu filho mais velho, que também já buscava apoio com amigos e parceiros da associação para retirada de seu pai, tendo em vista o médico ter falado que este já precisava de UTI. O Município de Itaituba aguardava leito de UTI em Santarém, enquanto isso o quadro de Amâncio se agrava mais ainda, e por meio da COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira e pressão do Ministério Público Federal, o Estado assegurou um leito de UTI na Capital do Estado do Pará (Belém) para o dia 30 de maio. Amâncio as 16 horas da tarde, ligou para seu filho, muito cansado e pediu que ele o levasse para casa, pois queria morrer junto de seus familiares, seu filho entrou em desespero e começou cobrar agilidade para a represente do Polo Base. Neste momento as 17h, Amâncio foi levado ao Hospital Municipal de Itaituba para ser entubado e levado ao leito de UTI na capital, porém a UTI aérea ainda não tina sido solicitada pela prefeitura de Itaituba. O mesmo foi entubado com muita dificuldade e saturando 40, segundo informação de uma médica intensivista que operava os respiradores da UTI do Hospital Municipal, esta desabafava sobre a situação do indígena, e também pelo estado dos equipamentos que não funcionavam, e ainda não havia oxigênio para que fosse entubado a tempo. Com ajuda dos médicos da UTI aérea, que vieram buscá-lo, conseguiram sedá-lo e entubar, porém não houve como ser retirado naquele mesmo dia, ficando assim para o dia 30 de maio, porque aguardava melhorar a saturação. Foi retirado para Belém as 10 horas da manhã, chegando e sendo levado ao Hospital Regional Dr. Abelardo Santos, onde continuou sedado, entubado, e veio falecer as 3 horas da madrugada do dia 02 de junho de 2020.

A morte de Amâncio Ikõ Munduruku, foi um choque para todas as comunidades do médio e alto tapajós, porque ele trazia consigo, muita vida. Até hoje, as comunidades choram a perda desse grande líder.

FONTES

Foto em Destaque: Izabel Gobbi (FUNAI)
Fotos na Galeria: Via página “Os Brasis e suas Memórias”; Izabel Gobbi (FUNAI)

Este relato também foi publicado pelo projeto “Os Brasis e suas Memórias”
 https://osbrasisesuasmemorias.com.br/amancio-iko-munduruku-ikomuywatpu/

Sobre o Amâncio Ikõ Munduruku, há também este tributo feito pelo pessoal do  Neepes/Fiocruz.
https://www.youtube.com/watch?v=bNFGkugCJbQ&feature=youtu.be&fbclid=IwAR0r2rHp8Dn3EwDfwZapHX06tieyNQWRk7WdBwVeQ-jsOOjJXsHoUMQ-Zrc


Homenagem (biografia) escrita e enviada por Arlisson Ikõ Biatpu Munduruku, filho de Amâncio Ikõ Munduruku.

Mediação: Luciana França (Antropologia, UFOPA – Santarém/ PA) e Izabel Gobbi (FUNAI)