Evaristo Garcete, 59

Guarani-Kaiowá

Evaristo Garcete, 59 anos, é o primeiro Guarani vítima da Covid-19 na região da cidade de Dourados, estado do Mato Grosso do Sul. Ele faleceu dia 18 de junho de 2020, no Hospital Evangélico de Dourados, onde estava internado há 11 dias. Havia sido transferido do Hospital Porta da Esperança, mantido pela Missão Evangélica Caiuá na Reserva de Dourados. Ali esteve internado por uma semana, desde o dia 31 de maio, com pneumonia provocada pela Covid-19. Sua morte foi anunciada na imprensa, nos sítios eletrônicos G1 e do jornal local Midiamax.

Seu Evaristo morava na aldeia Bororó, na Reserva de Dourados, onde convivem hoje cerca de 17 mil indígenas dos povos Guarani, Kaiowá e Terena. Ele era pai de cinco filhos e trabalhava há algum tempo como servente-pedreiro na construção de rodovias. Seu sustento financeiro anterior havia sido no corte de cana-de-açúcar para usinas alcooleiras da região.

Na região sul do Mato Grosso do Sul a maior parte dos territórios indígenas foi demarcada sob a nomenclatura de “reserva” entre 1915 e 1930, nos primórdios das ações integracionistas dos povos originários à sociedade envolvente. Na época, essas ações foram promovidas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios – SPI (existente de 1910 a 1967). Posteriormente, as demarcações ficaram nas mãos da FUNAI (1969 em diante). Indígenas foram expulsos de suas terras tradicionais e deslocados para as reservas pelo estado, que as titulou em nome de particulares donos das primeiras empresas agropecuárias da região. Hoje, boa parte das aldeias e terras ocupadas pelos Kaiowá, Guarani e Terena encontram-se superpovoadas e diante da destruição provocada pelas intensivas atividades do agronegócio (soja, milho, gado e outras). O corte da cana-de-açúcar é um braço forte da agroindústria no estado, atividade que Evaristo Garcete exerceu.

A história de Evaristo Garcete traz também outro nome simbólico e de grande importância para a memória da família: ele era sobrinho de Marçal de Souza Tupã. O antropólogo Felipe Mattos Johnson registrou uma nota sobre Marçal em sua dissertação de mestrado:

“Guerreiro Guarani histórico, nasceu em 24 de dezembro de 1920. Lutou em defesa de seu povo, denunciando o agronegócio justamente em fase de expansão na década de 1970. Foi combatente na retomada de Pirakuá, município de Bela Vista, já na década de 1980. Foi assassinado brutalmente em 1983, a mando de fazendeiros da região.” (JOHNSON, 2019, p.89)

Everton Garcia Garcete, filho de seu Evaristo, foi quem realizou um ritual funerário quase solitário, em consequência das condições sanitárias durante a pandemia de Covid-19. Segundo a reportagem de Marcos Morandi no portal Midiamax, Everton “não tirava os olhos da fita métrica usada, para saber se ainda não tinha alcançado os sete palmos; fazia algumas pausas para limpar o suor do rosto e desenterrar algumas lembranças de alguém que sempre foi um trabalhador e morreu sem conseguir se aposentar”. A seguir republicamos outro trecho da mesma reportagem, no qual Everton manifestou o luto em forma de desabafo:

Ele ajudou no progresso do Brasil, trabalhando em usinas de álcool, em rodovias, e o que ele ganhou com isso? Só o seu minguado salário. E os seus direitos como ser humano? Como cidadão? Como brasileiro? Como indígena? Porque ele era indígena nato, guarani puro. Cadê? (…) Muito do que esse velho índio me ensinou, com certeza aprendeu com seu tio Marçal, que sempre foi um defensor das causas indígenas, mais que os jovens aqui da Reserva. Às vezes [eles, os jovens], nunca ouviram falar.

Emocionado, o jovem guarani discorreu sobre a importância de algumas pessoas da família. Cavando a sepultura para o corpo do pai, relembrou histórias de seu tio (tio-avô) Marçal de Sousa. O descaso estatal com os Guarani e Kaiowá se revela no total descuido com os seus rituais funerários, e na precariedade da saúde em Terras Indígenas superpopulosas como a Reserva de Dourados, onde a concentração demográfica é 50 vezes maior do que a média estadual. Os modos tradicionais de ocupação territorial indígena envolvem áreas de maior extensão; os Guarani e Kaiowa hoje dispõem de menos que o módulo rural mínimo necessário para a sobrevivência de agricultores familiares. O estado do Mato Grosso do Sul abriga a segunda maior população indígena do Brasil (só fica atrás do Amazonas), confinada em pequenos territórios, nos quais o crescimento da população supera a média nacional. Muitas vezes o racismo estrutural aparece sob o aspecto velado da ótica do “progresso”, como narra Everton ao mencionar as contribuições realizadas pelo pai, seja na construção de rodovias ou no corte de cana para a agroindústria alcooleira.

Na cidade de Dourados uma cena bastante comum é a presença indígena. Circulam diariamente por ali muitos moradores das aldeias da Reserva de Dourados (Jaguapiru e Bororó), que vão para a cidade trabalhar ou resolver outras pendências. Tanto na região central de Dourados como em bairros da periferia é possível perceber a circulação de indígenas em carroças, bicicletas ou mesmo a pé: famílias inteiras (inclusive idosos, mulheres e crianças) se deslocam pedindo pão ou doações de outros alimentos de casa em casa. Indígenas são contratados como mão de obra sazonal para prestar serviços na agroindústria, seja no corte da cana-de-açúcar, em plantações de soja ou em frigoríficos.

O sítio eletrônico “Povos Indígenas do Brasil”, do Instituto Socioambiental – ISA, registra: “Com a proximidade do contato e as variadas situações de exigüidade de terras disponíveis face à superpopulação de algumas áreas, os Ñandeva e Kaiowa são obrigados a trabalhar no mercado regional. Se até alguns anos atrás havia demanda para o trabalho dos índios nas fazendas que se estavam formando, hoje em dia esta atividade arrefeceu sobremaneira, na medida em que as fazendas foram implantadas e hoje utilizam mecanização no plantio ou, de outro lado, os espaços foram transformados em terras que têm diminuído a oferta de trabalho em decorrência da mecanização, o que ocorre principalmente no MS, onde o problema é mais grave. Ultimamente os Kaiowa e os Ñandeva têm sido contratados por usinas de álcool distantes de suas comunidades, onde os homens permanecem por semanas trabalhando longe de suas famílias”.

No portal do De Olho Nos Ruralistas ficamos sabendo que a entrada do novo Coronavírus na Reserva de Dourados ocorreu no mês anterior, entre os dias 10 e 11 de maio de 2020, pela contaminação de trabalhadores da multinacional JBS. Porém, a empresa soltou uma nota apenas em 14 de maio, contando sobre uma mulher indígenas de 35 anos que havia sido contaminada em suas dependências. Foi através do contágio de trabalhadores indígenas contratados por um frigorífico da JBS que a Covid-19 adentrou as aldeias Jaguapiru e Bororó. Na atual conjuntura social, sanitária e econômica advinda da pandemia da Covid-19 são incontáveis as dificuldades e as complexidades que atravessam o cotidiano dos Kaiowá e Guarani (e também dos Terena). As notícias tristes aumentam na medida em que a doença se espalha por várias aldeias e Terras Indígenas da região sul do Mato Grosso do Sul.

 

Nota de Pesar das lideranças dos grandes Conselhos Tradicionais Guarani e Kaiowá – Aty Guasu; Kuñangue Aty Guasu; Retomada Aty Jovem; Aty Jeroky Guasu.

 

Viemos a público através desta carta informar e lamentar o falecimento dos primeiros indígenas Guarani e Kaiowá, vítimas de COVID-19 na aldeia de Dourados-MS.

Evaristo Garcete, 59 anos, estava internado desde o dia 7 de junho, e sua morte pela COVID-19 foi confirmada, nesta sexta-feira, 19 de junho de 2020.

VIDAS INDÍGENAS IMPORTAM

A APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), confirma [nesta data, 19/06/2020] 301 óbitos por COVID-19 e pelo menos 6.352 casos confirmados da doença entre a população indígena no país.

A pandemia de COVID-19 que assola o país, atinge o nosso povo Guarani e Kaiowá de forma ainda mais cruel. Somos a segunda maior população indígena do Brasil, e nos encontramos em um contexto histórico de falta de terra, de saneamento básico, alimentação adequada, contaminação de agrotóxicos e ataques de pistoleiros.

A Reserva Indígena de Dourados, a mais populosa do estado, chega a 122 casos positivos de corona vírus em junho de 2020.

Por isso, reforçamos a importância da formação e manutenção de barreiras sanitárias no território Guarani e Kaiowá. Toda ajuda humanitária às comunidades indígenas é bem-vinda e necessária neste momento tão difícil que estamos passando.

Somado a isso, a crise da Covid-19 também está fomentando o racismo, que ganha forças contra a população indígena Guarani e Kaiowá, que está sendo acusada indevidamente de ser disseminadora da doença na região, sendo que na verdade o rastreamento de contágio dos primeiros casos positivos na aldeia de Dourado indicam que estas pessoas foram contaminadas fora da aldeia trabalhando em um grande frigorífico da região. […]

Essa é uma doença grave, não é só uma gripezinha, e centenas de vidas indígenas já foram dizimadas com a chegada do coronavírus, e a situação é agravada devido às políticas econômicas e sociais do atual governo.

Deixamos aqui a nossa solidariedade à família Guarani e Kaiowá em luto e seguimos construindo estratégias de combate para que o nosso povo sobreviva a essa pandemia.

Agradecemos a todos(as) que colaboraram e seguem colaborando com a nossa batalha, e cumprimentamos a todos os profissionais em luta e a todas as famílias em luto. Convocamos o povo a vir lutar conosco!

Tekohas Guarani e Kaiowá, 20 de Junho de 2020.

FONTES

Foto em Destaque: “Futurismo Indígena”. Arte e colagem feita pelo artista Kadu Xukuru (Instagram: @kaduxukuru)

Fotos da Galeria: “Futurismo Indígena”. Arte e colagem feita pelo artista Kadu Xukuru; Reprodução// Enterro de Seu Evaristo por MídiaMax (Marcos Morandi).

Conselho Indigenista Missionário – Regional Mato Grosso do Sul (CIMI – MS)
https://cimi.org.br/2020/05/nota-do-cimi-ms-sobre-pandemia-covid-19-entre-kaiowa-guarani/

De Olho Nos Ruralistas
https://deolhonosruralistas.com.br/2020/05/19/contaminacao-em-aldeia-em-dourados-ms-comecou-na-fabrica-da-jbs-diz-cacique/

https://deolhonosruralistas.com.br/2020/06/18/sem-agua-e-saneamento-indigenas-de-dourados-ms-vivem-o-apartheid-da-covid/

JOHNSON, Felipe Mattos. Pyahu kuera: uma etnografia da resistência jovem guarani e kaiowá no Mato Grosso do Sul. 2019. 185 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, 2019. Disponível em: http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1590

MidiaMax
https://youtu.be/GmH57W4dUgY 

Kuñangue Aty Guasu
https://www.facebook.com/kunangueatyguasu/photos/a.471495453223126/1176455092727155/ 

G1 
https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/resultado-das-apuracoes/pedreiro-de-59-anos-e-primeiro-indigena-e-morrer-de-covid-19-em-ms-total-de-vitimas-da-doenca-chega-a-40.ghtml

Brasil de Fato
https://www.brasildefato.com.br/2020/06/21/regiao-onde-morreu-primeiro-indigena-no-ms-tem-um-medico-para-atender-17-mil-pessoas 

https://www.brasildefato.com.br/2020/06/01/em-17-dias-numero-de-indigenas-com-covid-19-cresceu-7-400-no-mato-grosso-do-sul

Atanazio Cabreira, 67

Terena

Biografia por Bianca Cegati Ozuna* – Jornalista//SOS Imprensa


A casa de “seu” Tanazinho, frequentemente é ponto de referência para quem explica algum endereço na aldeia Jaguapiru. Homem de fácil comunicação, respeitado, mas também muito brincalhão, o que o tornou um exemplo para os mais jovens da região. Pai de 12 filhos e avô de 46 netos, foi capitão da aldeia em outras épocas e depois se tornou pastor de uma igreja evangélica, da qual era presidente. Ainda assim, e, mesmo aposentado, encontrava tempo para trabalhar com o conserto de carros. Com orgulho, era mecânico. 

A breve biografia, que pouco – ou quase nada – foi contada pela imprensa local, é de Atanazio Cabreira, de 67 anos, morador da aldeia Jaguapiru, na Reserva Indígena Federal de Dourados, estado de Mato Grosso do Sul. Nas matérias sobre sua morte, “seu” Tanazinho, como era conhecido, foi retratado apenas pelo anônimo conjunto gênero-idade-numeral ordinal: homem, 67 anos, segunda vítima da covid-19 na Reserva. Foi necessário buscar em quatro sites locais de notícias para encontrar seu nome e qualquer outra informação não emitida em nota.
(…)

 “Uma referência para a vida toda, pois era trabalhador, honesto e muito querido por todos, realmente especial, sempre calmo e aberto ao diálogo. Me lembro de tantas coisas ótimas com ele, como quando eu era criança e andávamos de trator! Ele e uma criançada! Íamos buscar pasto para os animais. Era só alegria! E faz tanto tempo, eu tinha sete anos, mas nunca me esqueço”.

As recordações são de sua neta, a auxiliar em saúde bucal Edivania Cepre Cabreira, de 30 anos. Acometido pelas complicações da contaminação pelo novo coronavírus, o terena faleceu no Hospital Evangélico, em Dourados, no dia 26 de junho, após 21 dias de internação. (…)

(…) Quando, então, a notícia ultrapassa a zona urbana das cidades e tem foco nas comunidades marginalizadas, bastam tabelas cheias de números e porcentagens saídas de alguma secretaria para narrar essas vidas. E, assim, mesmo que inconscientemente, o jornalismo local, o que mais facilmente cai “na boca do povo”, comete o erro histórico de não mais contar histórias, principalmente quando se trata das trajetórias de populações esquecidas pelo poder público, como é o caso dos indígenas do Sul de Mato Grosso do Sul.

Em Dourados, segunda maior cidade do Estado, e a que comporta a mais populosa reserva indígena do Brasil, a população das aldeias sobrevive sem rostos. São 18 mil pessoas literalmente à margem da sociedade douradense, se somados os moradores das aldeias que compõem a Reserva Federal – Jaguapiru e Bororó – aos que vivem na aldeia Panambizinho e nas comunidades acampadas em terras retomadas.

Leia o texto completo: “Na Reserva Indígena Mais Populosa Do País, A Pandemia Não Tem Rosto, Apenas Números.”

 

FONTES

Foto em Destaque: Acervo pessoal de Edivânia Cabreira
Fotos da Galeria: Acervo pessoal de Edivânia Cabreira

 

Na reserva indígena mais populosa do País, a pandemia não tem rosto, apenas números