Neuraci Ramos de Oliveira, 44

Ticuna

Homenagem escrita em conjunto pela Campanha Kanmari, Felipe Milanez(UFBA), Lino João Oliveira Neves(UFAM), Barbara Arisi (UNILA), Armando Soares (Sertanista e indigenista da Funai aposentado).


Com pesar informamos o falecimento ocorrido no dia 8 de julho de 2020, por COVID-19, de Neuraci Ramos de Oliveira, Indígena pertencente ao Povo Ticuna. Neuraci tinha 44 anos, era companheira de Higson Kanamari Warü, liderança do Povo Kanamari, da Terra Indígena Vale do Javari (Amazonas). Juntos tiveram oito filhos, e três netos. Presidente da Associação dos Kanamari do Vale do Javari (AKAVAJA), Higson é uma das principais lideranças da região. O Povo Kanamari foi diretamente afetado pelo novo coronavírus desde 3 de junho, quando Agentes de Saúde infectados, sem atender ao protocolo da quarentena e prevenção de contágio, contaminaram três indígenas. No presente momento há mais de 100 Indígenas do Vale do Javari contaminados nas aldeias.  

Neuraci nasceu e se criou na comunidade ticuna ribeirinha Terezina 4,  Alto Solimões. 

O povo Ticuna também tem sido um dos mais afetados pela Covid-19, com alto índice de infecção e óbitos neste povo, tanto os que vivem em contexto urbano quanto os que estão em seu território tradicional. 

Palavras de Higson Kanamari Warü:

“Sempre foi uma mulher guerreira, que lutava junto comigo a luta do Movimento Indígena. Nos tempos que eu precisava estar em área ou em viagens, às vezes quatro, cinco meses ausente na luta do Movimento Indígena que me levava para distante, Neuraci assumia o papel do pai e da mãe que cuidava das crianças e protegia nossa família. Foi uma mulher alegre, que acolheu pessoas próximas, sempre apoiou os parentes indígenas e nunca deixou ninguém de estômago vazio. É uma tristeza muito grande para todos os povos do Alto Solimões e Vale do Javari. Só tenho a agradecer a Deus pela vida que ele nos deu.” 

Todos os apoiadores e apoiadoras da campanha Kanamari Urgente nos solidarizamos com os Povos Kanamari e Ticuna e reforçamos nosso compromisso de lutar pela vida e pela memória, contra o genocídio.

Kypatyry Kypyxyry, 90

Apurinã

Homenagem escrita pela antropóloga Juliana Schiel e por Maypatxi (Vanessa Apurinã Souza) – Secretária Executiva da Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi (OPIAJ)

 

No dia 16 de junho, Kypatyry Kypyxyry, seu Moacir de Souza Apurinã,  faleceu de Covid-19. Ele havia dado entrada no hospital de Pauini, no Amazonas, às 10h40 da manhã do dia anterior (segunda-feira, dia 15 de junho). No hospital, realizou um teste rápido para Covid-19 e o resultado foi positivo. Foi, então, encaminhado para uma sala de isolamento porque apresentava muita falta de ar e se sentia bastante cansado. No dia seguinte, terça-feira, faleceu às 12h30.

Moacir tinha 90 anos e nasceu na colocação São José do Tacaquiri, hoje Terra Indígena Peneri-Tacaquiri. Filho de Raul e Maria, era neto de Antônio Maia e de André, e bisneto de Payanã (Mayõpyry), importantes lideranças e pajés dos tempos antigos. Aos 30 anos de idade, Moacir decidiu vir morar na região de Santa Vitória.  Ainda que todo Vale do Tacaquiri fosse região historicamente reconhecida como indígena, e bravamente defendida por André no passado, a região de Santa Vitória não foi reconhecida no primeiro processo de regularização, ficando de fora do perímetro da Terra Indígena Peneri/Tacaquiri. Apesar da pressão de pessoas de fora para que se mudasse para dentro da Terra Indígena demarcada, Moacir sempre defendeu a sua aldeia em Santa Vitória como terra indígena. Para isso, tinha os argumentos da história da região, que conhecia como ninguém. A área está em processo de regularização.

“Moacir foi uma das minhas famílias quando trabalhei no Purus. Inúmeras vezes ele e Dona Maria, sua esposa, receberam-me. Pessoas doces e amorosas, guardaram minhas coisas, aconselharam-me, contaram histórias de pajés, histórias antigas. Seu Moacir me mostrou os lagos habitados por pajés e os muitos sinais da presença antiga dos Apurinã na área da Santa Vitória.” (Juliana Schiel, antropóloga)

A Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi (OPIAJ), publicou a seu respeito:

“Ele era pajé e leva consigo conhecimento de nossa cultura e tradição. O sentimento que nós temos é que perdemos uma biblioteca de saberes, porém aceitamos a ordem divina de nosso Tsura. Seu ciclo se encerrou e novos ciclos se iniciarão. Nós, enquanto povo e organização, estaremos aqui para dar continuidade na sua e nossa luta.”

FONTES

Foto em Destaque: Juliana Schiel

Fotos na Galeria: Juliana Schiel; Juliana Schiel e Maypatxi (Vanessa A. Souza)

Leitura sugerida: “Tronco Velho: histórias Apurinã” – tese da antropóloga Juliana Schiel.

https://bityli.com/UY9F0 


Texto e fotos enviados pela antropóloga Juliana Schiel e por Maypatxi (Vanessa Apurinã Souza) – Secretária Executiva da Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi (OPIAJ)

Otávio dos Santos, 68

Sateré-Mawé

Otávio dos Santos, Sateré-Mawé, faleceu no dia 16 de abril de 2020 vítima da covid-19, aos 68 anos de idade. Ele foi transferido da aldeia para o hospital na cidade de Maués, onde ficou internado por quatro dias. Otávio era a principal liderança da comunidade São Benedito, no rio Urupadi, bem próximo ao rio Marau, no município de Maués – Amazonas.

“Meu pai era uma pessoa muito simples e sábia, aprendemos muito com ele! Nos criou e educou sempre com muita luta e vencendo os desafios”, conta Flávio dos Santos, terceiro dos seis filhos de seu Otávio com dona Maria Batista, de 60 anos de idade. E segue Flávio emocionado: “Ele era uma pessoa extremamente dedicada em tudo o que fazia. Por causa de racismo sempre houve tentativas de nos expulsar de nossas terras e por isso meu pai, junto com os conselhos de meu avô Benedito Batista e com a excelente disposição do meu tio Venâncio dos Santos (ambos também falecidos), lutaram muito para nos afirmarmos aqui na região, e assim meu pai ficou muito sábio. Meu pai entendeu que era importante aprender sobre os nossos direitos e valores enquanto povos indígenas e isso foi o grande legado que deixou para a gente. Ele foi guerreiro e muito forte. Sempre trabalhou com plantação de guaraná. Meu pai sonhava em construir um barco, em instalar energia solar e internet em nossa comunidade e com a construção e manutenção de um espaço, na própria comunidade, para realização de atividades e fortalecimento da nossa cultura. Meu pai nos ensinou a lutar pela educação, pela arte, pelos conhecimentos e pelas histórias de nosso povo. Ele era excelente contando muitas histórias de caçadas e sobre como as coisas foram feitas, ensinando a tecer cestos, vassouras, tipiti, peneiras e outros objetos. Mas também contava histórias sobre a origem das plantas, do tipiti, da peneira, sobre a origem da nossa arte. Após sua morte abrimos mais a nossa visão pois ele deixou seus sonhos para a gente continuar sonhando e fazendo acontecer”.

A população Sateré-Mawé vive, em sua maioria, na Terra Indígena Andirá-Marau, situada entre os municípios de Aveiro, Maués, Barreirinha e Itaituba, na divisa entre os estados do Amazonas e Pará. Uma pequena parte dessa população vive na Terra indígena Coatá-Laranjal, junto aos Munduruku. Como muitos outros povos indígenas, também vivem em partes de seus territórios que ficaram de fora dos limites administrativos demarcados pelo estado brasileiro. Para saber mais sobre os Sateré-Mawé acesse o verbete do PIB Socioambiental no link abaixo.

FONTES

Foto em destaque: Flávio Otávio dos Santos (filho de sr.Otávio)

Fotos da galeria: Flávio Otávio dos Santos (filho de sr.Otávio) e Reprodução//Amazônia Real (Acervo CTI)

Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/grande-lideranca-satere-mawe-tuxaua-otavio-dos-santos-morre-por-covid-19-no-amazonas/ 

Colaboração: Diogo Campos (Antropologia, Iepe – Nhamundá/AM)

Messias Martins Moreira, 53

Kokama

Messias Martins Moreira, o Messias Kokama, faleceu aos 53 anos, em Manaus, no dia 13 de abril de 2020. A professora Claudia Baré reconhece que, nesta data, os povos indígenas perderam uma grande liderança que sonhou, idealizou e esteve à frente de um projeto reunindo cerca de 35 diferentes etnias no Parque das Tribos, bairro Tarumã, o primeiro bairro indígena de Manaus. Dentre essas etnias estão os Apurinã, Baré, Baniwa, Mura, Kokama, Karapano, Barassano, Piratapuia, Tuyuka, Tariano, Ticuna, Dessano, Marubo, Uitoto, Miranha, Curipaco, Wanano, Sateré, Tukano, Tupinambá (vindo da Bahia) e Canamari.

Glademir Sales dos Santos, pesquisador da “Nova Cartografia Social da Amazônia”, num texto-homenagem, refaz um pouco a biografia e o itinerário do líder indígena. Do povo Kokama, Messias Martins Moreira, nascido em 19 de setembro de 1966, veio da comunidade Tabaco, entre os municípios de Santo Antonio do Içá e Amaturá. Em Manaus, sua percepção crítica ao modo de proceder de lideranças em ocupações anteriores levou-o a se preocupar com a organização e a resistência do Parque das Tribos, unindo-se nesse esforço à sua tia, Raimunda da Cruz Ribeiro, e à prima, Lucenilda Ribeiro de Albuquerque; mãe e filha que vieram do município de Alvarães.

Reconhecido como cacique, Messias Kokama esteve à frente de muitas lutas, como na madrugada do dia 28 de novembro de 2014, quando policiais militares, acompanhados do batalhão de choque, da polícia civil e da cavalaria entraram na ocupação “derrubando moradias, batendo e obrigando os indígenas a tirar a roupa”. O cacique Messias enfrentou a violência e defendeu o “projeto de vida” indígena na cidade, contra toda sorte de preconceito e de estigma manifestados na acusação de serem “invasores travestidos de índios”. Como disse Sales dos Santos, o cacique Kokama “uniu memórias e pessoas, com espírito de guerreiro, e delas se despediu no dia 13 de maio de 2020 [vítima da Covid-19], deixando um projeto de vida, o Parque das Tribos. Os que não o conheceram terão a oportunidade de conhecê-lo através desse projeto de vida em construção, o Parque das Tribos, que se confunde com o seu espírito”.

FONTES

Foto em Destaque: Parque das Tribos Tarumã Amazônia

Fotos da Galeria: Divulgação// Facebook – Parque das Tribos e FEI – Fundação Estadual do Índio; De Olho Nos Ruralistas

De Olho Nos Ruralistas
https://deolhonosruralistas.com.br/2020/05/27/memorias-da-pandemia-messias-kokama-um-cacique-de-muitos-povos/

Nova Cartografia Social da Amazônia
http://bit.ly/2AaK3CS

The New York Times
https://www.nytimes.com/2020/06/18/obituaries/messias-kokama-dead-coronavirus.html?fbclid=IwAR2bZq3MquZzt-om9AJhrMvuFOwJfJAkSjYJkNdbakBplmCuBldgPUymxgE

Parque das Tribos Tarumã Amazônia
https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=2340846306019115&id=921406434629783

Luiz Carlos Rodrigues Curico, 44

Kokama

Luiz Carlos Rodrigues Curico, do povo Kokama, faleceu aos 44 anos no dia 23 de maio de 2020, no hospital de guarnição de Tabatinga, no estado do Amazonas. Ele era acadêmico do penúltimo período do curso superior de Formação de Professores Indígenas da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas, Turma Alto Solimões, no município de Benjamim Constant. Carlos Curico atuava como professor na Terra Indígena Sapotal, e vivia na cidade de Tabatinga.

Segundo informações do Instituto Socioambiental (ISA), os Kokama habitam o rio Solimões, espalhados na região da tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia, em cada um dos três países. Falam uma língua do Tronco Tupi, da família Tupi-Guarani. O contato dos Kokama com a sociedade não-indígena remonta às primeiras décadas de colonização espanhola e portuguesa, no início do século XVI. Os aldeamentos e deslocamentos forçados, impostos primeiramente pelas missões católicas e depois pelas frentes extrativistas, acabaram criando um contexto tão adverso para a existência física e cultural desse povo que acarretou a sua negação da identidade indígena por muitas décadas. Desde os anos de 1980, porém, a identidade indígena Kokama vem sendo cada vez mais valorizada no contexto de suas lutas políticas – que incluem outros povos indígenas do Solimões – por terras e acesso a programas diferenciados de saúde, educação e alternativas econômicas.

Fontes

Foto de Destaque: Autorizada por Antônio Filho (irmão de Luiz Carlos Curico)

Fotos da Galeria: Autorizada por Antônio Filho (irmão de Luiz Carlos Curico)

Instituto Socio-Ambiental (ISA)
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kokama#Fontes_de_informa.C3.A7.C3.A3o

Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
https://ufam.edu.br/ultimas-noticias/1458-nota-de-pesar-discente-formacao-de-professores-indigenas-luiz-carlos-curico-kokam.html 

ESCUELA IKUARI – KUMBARIKIRA
https://youtu.be/JxovOS7ueP0

 

Feliciano Lana, 83

Desana

Soubemos pelo site do Instituto Socioambiental (ISA) que Feliciano Pimentel Lana faleceu no dia 12 de maio de 2020, em São Francisco, comunidade indígena situada no Alto Rio Negro. Aos 83 anos, o artista plástico do povo Desana, de estilo inconfundível, deixa uma extensa produção que se espalhou por muitas publicações e acervos de instituições nacionais e internacionais, tornando-se uma marca do Rio Negro indígena. Ele era um artista expedito e versátil que expressava conhecimentos minuciosos das narrativas míticas, da história e das paisagens do noroeste amazônico em seus desenhos e pinturas.

 

Feliciano nasceu na comunidade desana São João, no Médio Rio Tiquié, tendo recebido o nome de benzimento de Sibó, “filho do sol”. Outro artista indígena, Denilson Baniwa, assim disse sobre Sibó: “O mundo perde hoje um dos maiores artistas indígenas da contemporaneidade. Uma biblioteca humana, grande artista, amigo, irmão e exemplo para muitos jovens indígenas. Uma profunda dor por cada mestre que perdemos. Nós ficaremos com a lembrança dos ensinamentos e das risadas alimentadas durante sua passagem por este planeta. É preciso que ajudemos ainda mais a proteger as populações indígenas desta doença Covid-19”.

 

FONTES

Foto em Destaque: Juliana Radler (via ISA-Socioambiental)
Fotos da Galeria: Reprodução//Amazônia Real (Ilustração 1); Tatiana Cardeal (via Amazônia Real); Amazônia Real (Ilustração 2); Amazônia Real (Ilustração 3); ISA-SocioAmbiental (Ilustração 4); Thiago Oliveira (via Amazônia Real); Juliana Radler (via ISA-Socioambiental). 

Instituto Socioambiental (ISA)
https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/rio-negro-perde-seu-feliz

Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/o-lider-do-povo-desana-feliciano-lana-morre-em-sua-casa-no-alto-rio-negro/

Aldevan Brazão Elias, 46

Baniwa

Aldevan Brazão Elias, 46 anos, indígena do povo Baniwa, do Alto Rio Negro, faleceu de Covid-19, no dia18/04/2020. Ele era agente de combate às endemias da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), da Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas (Susam), defensor da saúde indígena, colaborador de cientistas e escritor.

Aldevan Baniwa, como era mais conhecido, segundo a agência de notícias “Amazônia Real”, nasceu na comunidade Castanheiro, no município de Santa Isabel do Rio Negro (AM). Ele tinha uma expressiva atuação na comunidade acadêmica, colaborando com produções científicas de pesquisadores. Foi casado com a antropóloga Ana Carla Bruno, colunista da Amazônia Real e professora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), com quem teve duas filhas. Aldevan e Ana Carla são dois dos autores do livro “Brilhos na Floresta”, junto com os pesquisadores Noemia Kazue Ishikava e Takehide, além da ilustradora Hadna Abreu.

A cineasta Maya Da-Rin, que fez o lindo filme “A Febre” (2019), rodado em Manaus, escreveu a seguinte palavra em sua homenagem: “Aldevan foi uma das pessoas mais generosas que conheci. Em 2017 nos acompanhou em muitas das incursões que fizemos para a pesquisa de elenco de ‘A Febre’. Gostava de estar junto, conversando, partilhando ideias. A partir de então sempre ficamos em contato. Lembro dele explicando para os guardas o que era caxiri, quando fomos parados em uma blitz da lei seca ao voltar de uma comemoração do abril indígena, há exatamente três anos. Lembro das frutas que ele me apresentou, dos livros que me mostrou, da peixada que fizemos na sua casa logo antes das filmagens. A última vez que nos falamos foi no dia 20 de março. Aldevan era agente de saúde e estava trabalhando na linha de frente. Perguntei como eles estavam se protegendo. Ele me respondeu dizendo que ‘nós da saúde não podemos ficar em casa, temos que trabalhar no atendimento aos casos suspeitos’. Aldevan nunca pensou só em si. Que a sua estrela siga brilhando como uma flecha.

 

Há várias memórias: um vírus, uma história, muitas trajetórias (Ana Carla Bruno, Kaina e Win – Esposa e filhas de Aldevan Baniwa, em 18/04/2020)


1991, tranquei o curso de história e fui “ser professora” (aliás aluna da vida indígena) dos Waimiri Atroari, na Aldeia Alalaú (atentem para esta aldeia). Para chegar na aldeia, era preciso passar pela casa do senhor Valentin Elias (servidor da FUNAI), que carregava um tambor cheio de gasolina nas costas.

Entre 1991 a 1993, aprendi com os kinja um pouquinho de sua cultura e língua. Fui para roça, pescarias, festas, coleta de frutas, vi gente nascer, vi gente morrer, fiz amigos e aprendi a respeitar o modo de ser indígena.

Em 1996, retornando para área Waimiri Atroari, também no rio e aldeia Alalaú, conheci Aldevan Elias (Aldevan Baniwa). Tímido, calado, centrado em seu trabalho. Não lembro bem como começou, mas ao escutá-lo tocar no violão músicas de Legião Urbana e Engenheiros do Havaí fui me encantando e começamos a namorar. Entre Manaus e Belém (nesta época, eu era bolsista do Museu Goeldi), através de muitas cartas e raríssimos telefonemas (afinal Aldevan passava meses na aldeia), continuamos nosso relacionamento.

Em 1997, Aldevan foi conhecer meus pais e minha família no Recife. Olha, fez um sucesso!!! Todo mundo queria pegar em seu cabelo e meu pai chegou a dizer que queria ser o Aldevan. Lá deu seu primeiro mergulho no Mar. Em março de 1998, casamos. Na nossa pequena comemoração estavam alguns Waimiri Atroari e amigos do Programa Waimiri Atroari. Três dias depois, viajo para os Estados Unidos para iniciar o mestrado. Novamente, ficamos 9 meses separados e através de cartas sabíamos um do outro.

Dezembro de 1998: Aldevan chega em Tucson/AZ (o Amazonas indígena americano – terra dos Navajo, Hopi, Tohono O´odham, entre outras etnias) sem saber falar o verbo to be. Fácil? Não, não foi!!! Ele sentia falta da farinha, do rio, da família. Mas logo se entrosou com os brasileiros, os mexicanos, e não demoraria muito para o inglês dele ficar melhor que o meu. Sem sombra de dúvida, sua pronúncia era melhor que a minha!!! Sem vergonha, logo vieram as peladas com muitos americanos. Aprendeu a lidar com Adobe (material utilizado nas casas no Arizona), construindo algumas casas. Também, logo descobriu um rio no Mount Lemmon (localizado na Floresta Nacional de Coronado, ao norte de Tucson) e começou pescar trutas. Nunca comi tanta truta.

Não sabia andar de bicicleta e logo aprendeu na bicicleta que eu ia para universidade. Depois, comprou uma bicicleta de corrida e corria solto nas avenidas de Tucson. Também aprendeu a dirigir (olha Aldevan, até que você tentou me ensinar, mas não consegui aprender…)

Foram 5 anos em Tucson de muita batalha (você trabalhou como jardineiro, cuidador de um colega professor que tinha ELA, e como esquecer que você também atuou num documentário), cumplicidade e aprendizagem. Lá nasceram Kaina (2001) e Wina (2002). No parto da Kaina você quase desmaiou quando viu a agulha da Epidural. Mas o momento mais aldevaniano (quem o conheceu, entenderá) foi no nascimento da Wina. Ele cismou que queria que a Kaina participasse do parto. E claro, não funcionou. Kaina queria brincar com os instrumentos médicos. A médica num olhar fulminante falou para ele: retire esta criança daqui! E ele quis argumentar que, numa família indígena, os irmãos poderiam estar por perto…. Kaina herdou suas habilidades manuais. E Wina seu jeito sarcástico e teimoso.

No dia da minha defesa de doutorado, ele dizia com maior satisfação minha mulher é doutora em língua e cultura. Em agosto de 2003, voltamos os dois desempregados para o Brasil. Sem o apoio das nossas famílias não teríamos dado conta. E assim ficamos casados até 2016. O casamento acabou, mas a amizade e o respeito mútuo continuaram. Afinal tínhamos uma história e duas filhas. A cada conquista das meninas, ele vibrava, a cada visita de minha família e de amigos, ele estava presente. E, em 2019, virou escritor através da parceria com nossa amiga Noêmia.

Confesso, sempre foi um tabu para mim fazer pesquisa no Alto Rio Negro. O Alto Rio Negro, para além de um universo linguístico cultural fascinante, significa FAMÍLIA: é dona Joana (Tukano) e Sr. Emílio (Baniwa), avós das minhas filhas. São as tias e tios das minhas filhas, são os zilhões de primos. São as histórias do cotidiano contadas no sítio da Joanita, na ida para sua roça. É o peixe assado em Santa Etelvina. Vocês lembram do Sr. Valetin Elias, no ínicio do texto? Ele é tio do Aldevan por parte de pai (mas não época, eu não imaginava que casaria com seu sobrinho).

A COVID-19 tirou você de nossas vidas, mas não de nossas memórias e histórias. Tínhamos muitos planos para nossas filhas, não é??? Fique tranquilo pescando lá na Ilha da Oscarina (no Alto rio Negro) que eu cuidarei das meninas. Nestes últimos dias tenho dito para elas que você virou encantado.

Quero agradecer todos amigos do PWA, de Tucson, de Manaus, de Belém e do Recife pelas mensagens e lindos textos, pelo cuidado, pelo carinho…

Ana, Kaina e Wina.

 

Uma Carta (Ana Carla Bruno, Kaina e Win – Esposa e filhas de Aldevan Baniwa, em 18/04/2021)

Oi, eu não sei se você está pescando lá pelas bandas da Ilha Oscarina (Rio Negro), se você anda caçando ou andando de bicicleta. Por onde está…

Nas “internets” e “redes sociais” deste outro plano de encantamento, não sei se você está acompanhando o que está acontecendo pelas bandas de cá!!

As meninas e eu sempre falamos de você: quando assistimos a um filme; quando comemos peixe assado ( e claro, nenhum é igual ao seu); quando vemos alguma postagem sarcástica nas redes sociais; e sempre quando a campanhia toca por mais tempo do que deveria ( pois você tinha mania de ficar segurando quando vinha nos visitar).

Apesar do cansaço mental, da sensação de impotência e das dores das perdas ( e olha, foram muitas), estamos bem!!! MAS o Brasil, o Brasil:

– Você ainda estava entre nós quando o Mandetta saiu do ministério. Mesmo neste cenário de pandemia, já estamos com o quarto Ministro da Saúde;
– O perfil dos doentes de covid mudou, os pacientes agora são mais jovens;
– Mesmo depois de 1 ano, continuanos usando máscara, mas ainda existem pessoas que não acreditam na importância de seu uso;
– Ainda não podemos aglomerar, abraçar ou encontrar as pessoas que gostamos;
– Perdão, as meninas e eu ainda não conseguimos abraçar Sr. Emílio, Dona Joana Brazao, nossos sobrinhos(as), Tania Elias, Maria Do Socorro Elias, Magson Jesus.
Encontrei Andre Brazao e Lindomar Brazão na comunidade indígena Parque das Tribos, por meio de um projeto de pesquisa que estou participando.

Vi Solange Brazao e nos abraçamos com os olhos quando Dona Joana precisou ser internada quando Manaus sufocava por falta de oxigênio.

Sim, no dia 14 de Janeiro, aqui em Manaus, vivenciamos um cenário de horror… pacientes de covid morreram por falta de oxigênio nos hospitais. E agora, tristemente o Brasil todo está passando por situações similares…

Hoje, Manaus vive uma “amnésia coletiva”, parece que a pandemia acabou… e as pessoas insistem nas baladinhas. Por outro lado, os profissionais da saúde continuam tentando salvar vidas neste cenário caótico… mas saiba, eles estão exaustos e precisando de afeto e respeito.

Como eu poderia esquecer??? A Ciência e os cientistas venceram o tempo!!! Ao mesmo tempo, ambos sofrem com o negacionismo e as fake news. Mas temos VACINAS!! Mesmo com um número pequeno, devido a um “probleminha de gestão e diplomacia”. Apesar disso, o sistema SUS (para o qual você trabalhava) está dando seu melhor.

Kaina, Wina e eu, logo que você se encantou, fizemos 1000 tsurus de origami pela cura do mundo. Infelizmente, estamos vivenciando uma segunda onda:

– Atualmente, em média, temos 3 mil mortes por dia;
– Já atingimos mais de 370 mil mortos pela doença. Triste não é?
– Agora no domingo de Páscoa, Solange, Sr.Emílio e Magson fizeram uma surpresa: fizeram peixe e beiju para nós. Matamos a saudade de seu peixe. (Penso que cozinhar para o outro é uma demonstração de afeto)
– Sim, como poderia esquecer? O livro “Brilhos na Floresta” já foi traduzido para Baniwa, uma das línguas Yanomami, Kaingang e Guarani, além de sua versão em Nheengatu e da tradução para Tukano, que você chegou a ver…
Você conhece bem a nossa amiga Noemia Kazue Ishikawa, ainda estamos fazendo estripulias, pensando na década das Línguas Indígenas do Mundo, que será comemorada entre 2022 e 2032. Mas saiba, o grupo de pesquisa “Cogumelos da Amazônia.a” sente sua falta.

Não importa onde você esteja, suas filhas e eu esperamos que você esteja bem neste plano dos encantados.

Ana, Kaina e Win

FONTES

Foto de Destaque: Reprodução// BNCAmazonas

Fotos da Galeria: Amazônia Real; Acervo da Família; Steven Bird; Acervo da Família; (IDEM); (IDEM); (IDEM); ISA-Sociambiental

Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/aldevan-baniwa-que-denunciou-a-falta-de-testes-para-covid-19-morre-em-uti-de-manaus/

BNC Amazonas
https://bncamazonas.com.br/rapidinhas/agente-fmt-fvs-indigena-baniwa/aldevan-baniwa-1-2/

ISA- SocioAmbiental
https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/uma-estrela-baniwa-a-brilhar-no-ceu

Steven Bird
http://www.stevenbird.net/blog/nhengatu-a-timely-lesson-in-language-preservation